Novo CPC viola Constituição ao dar poderes legislativos a tribunais: Por Hugo Nigro

http://goo.gl/mbb5Zv | Segundo o Código de Processo Civil de 2015, os tribunais e os juízes observarão os precedentes dos tribunais superiores.

A novidade agradou a muitos, que não se conformam com a “loteria” das decisões judiciais, que dá a casos iguais soluções diferentes. Contudo, em vez de instituir um sistema recursal célere e eficiente para uniformizar a jurisprudência, o novo CPC preferiu solução simplista: permitiu aos tribunais legislarem.

A previsibilidade, a estabilidade e a segurança são realmente importantes, e, em outros países, são exigidas na prestação jurisdicional. O CPC voluntariosamente quis mudar o sistema brasileiro. Nossa Constituição já confere ao Supremo Tribunal Federal o poder normativo nas ações declaratórias de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, e nas súmulas vinculantes. O CPC acreditou-se no mesmo nível da Constituição, e acrescentou outras hipóteses… Afirmou que os acórdãos proferidos em incidentes de assunção de competência, em resolução de demandas repetitivas, em recursos extraordinários ou em recursos especiais repetitivos também têm força vinculante abstrata. Repicando a ousadia, afirmou que passam a valer como normas todas as súmulas do STF (não apenas as vinculantes). E mais: não só as súmulas e enunciados do STF e do Superior Tribunal de Justiça, mas também a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais os juízes estejam vinculados. Todas essas decisões criam normas obrigatórias para os casos atuais e até para casos futuros… O juiz só se desobriga de seguir o precedente se demonstrar a distinção do caso ou a superação do entendimento.

Demonstrar a distinção do caso pode ser problemático. Como levar adequadamente em conta as peculiaridades de um caso concreto, se não o apreciando no mérito ao fim de regular instrução? E valeria a pena suprimir a autonomia dos magistrados de primeiro grau, quando muitas vezes são eles mais independentes e acertam mais que os tribunais, até porque, investidos apenas por concurso, estão mais longe dos interesses político-partidários dos governantes e, sobretudo, em contato imediato com o problema real das partes? Lembremo-nos apenas, só para ter à mão um exemplo conhecido, a solução do desbloqueio das poupanças no Plano Collor, que os tribunais só encamparam muitos anos depois, quando milhares de sentenças individuais já tinham formado jurisprudência.

É fato que o CPC de 2015 mostrou preocupação com a lide coletiva, como quando se remeteu ao sistema da ação civil pública ou quando previu o incidente de resolução de demandas repetitivas.

Daí se tenta vender a ideia de que o CPC anterior, de 1973, seria individualista, e o CPC de 2015 seria voltado para o coletivo. Ora, a primeira afirmação é verdade: o código de 1973 é individualista, e não poderia ser diferente, pois é um código da época: ao seu tempo, a tutela coletiva ainda nem tinha nascido entre nós. Mas a segunda afirmação é incorreta: não é verdade que o novo CPC seja voltado para o coletivo. Quem não é um código da época é o atual CPC de 2015, que, posto contemplando alguns incidentes de caráter coletivo, omitiu a disciplina da tutela coletiva.

O novo CPC apenas subordina o juiz aos precedentes dos tribunais. Isso quer dizer que o subordinará sempre, inclusive nos processos que ainda sequer foram ajuizados, pois as decisões dos tribunais estabelecerão normas abstratas, válidas até para casos futuros!

Mesmo nas poucas hipóteses em que o poder legiferante dos tribunais éadmitido pela Constituição, ainda assim é anomalia em nosso sistema, pois quebra o princípio da separação de poderes e impede o funcionamento adequado do sistema de freios e contrapesos.

Ademais, trata-se de um problema de legitimidade política. Dar o poder de legislar ao Judiciário significa investir seus órgãos no poder de criar normas genéricas e abstratas, quando nossos juízes não têm investidura democrática. Eles não se submetem a qualquer forma de controle popular periódico, ao contrário dos membros dos Poderes Legislativo e Executivo, que elaboram as leis, mas se sujeitam ao controle eletivo do povo. Mesmo os membros das mais altas Cortes, que têm um bafejo de representatividade popular indireta porque indicados por meio de um processo político do qual participam representantes eleitos pela população, mesmo sobre estes magistrados a população não tem controle algum quanto à sua atuação ou à duração de sua investidura. Por isso, ressalvadas as hipóteses em que o próprio poder constituinte já outorgou ao STF o excepcional poder de fazer leis materiais dotadas de generalidade e abstração, no mais nem mesmo esta Corte pode criar lei material.

O CPC de 2015 já começa por dar o mau exemplo de quebra do princípio da segurança jurídica, ao concentrar os poderes de fazer a lei e julgar os conflitos decorrentes da aplicação da lei nas mãos do mesmo órgão judicial, que, de resto, ainda é o mesmo que decide sobre a constitucionalidade da mesma lei.

Ora, a necessidade de prevenir o arbítrio é o fundamento último da divisão ou da separação de poderes à guarda da Constituição. Daí porque preponderantemente quem faz a lei não é quem a executa nem julga se essa lei é ou não constitucional, e vice-versa — e temos aí a base das democracias ocidentais. Ainda que se admita que haja antes uma combinação de poderes, a maneira pela qual a Constituição faz a combinação deve ser estritamente observada. Se abandonarmos o sistema em que o STF só pode legislar excepcionalmente— é o que diz a Constituição —, e, por via da lei ordinária, se inaugurarmos um sistema em que o Judiciário poderá legislar por todos seus órgãos colegiados em qualquer matéria quando bem o queira — é o que diz o novo CPC —, violaremos a Constituição.

O sistema constitucional nega ao Poder Judiciário fazer leis fora das hipóteses constitucionais. Mas o CPC de 2015 achou que podia ir além: deu poder legiferante a todos os tribunais.

Por Hugo Nigro Mazzilli
Fonte: Conjur

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