A liberdade sobre o próprio corpo, os concursos públicos e o Supremo Tribunal Federal

goo.gl/JhQzwa | Brasília, 17 de agosto de 2016… ainda não se sabia, mas este era mais um dia banal em que o Supremo veio dizer o óbvio na capital do Brasil. Seria o dia de julgamento do Recurso Extraordinário nº 898450, mas também – e em razão deste julgamento – a liberdade de escolha do brasileiro estaria, mais uma vez, sendo apreciada pela Suprema Corte Constitucional.

Um tema há muito discutido nas salas de aula, nos bares, nas academias da vida seria analisado pelo STF: as tatuagens e suas consequências na vida profissional do indivíduo.

É fato que, já há alguns anos, os acadêmicos do Curso de Direito e todos os brasileiros e brasileiras que desejam prestar concurso público são orientados a não tatuarem seus corpos, especialmente em zonas facilmente visíveis conforme a vestimenta utilizada no dia a dia. Também é fato que há incontáveis histórias sobre o preconceito a pessoas que exibem (ou não) suas tatuagens vida afora.

Contudo, não é tão corriqueiro que o tema chegue aos nossos tribunais, menos ainda ao STF, em razão de que, já é costume e praxe que aqueles que desejam fazer uma tatuagem adiem este sonho para pós-aprovação e nomeação em cargo público, e, mais ainda, apenas realizem este desejo após a finalização do cumprimento do estágio probatório.

No caso concreto, por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a proibição de tatuagens imposta a candidatos a cargos públicos, mesmo quando presente esta informação nos editais de concursos. O Recurso Extraordinário tem repercussão geral.

Noticiam os autos que, Henrique Lopes Carvalho da Silveira impetrou mandado de segurança em face do Diretor do Centro de Seleção, Alistamento e Estudos de Pessoal da Polícia Militar do Estado de São Paulo, em virtude da exclusão do concurso público para o preenchimento de vagas de Soldado PM de 2ª Classe do referido ente da federação. De acordo com as alegações do autor, a desclassificação ocorreu porque, na etapa do exame médico, constatou-se que ele possuía tatuagem em sua perna esquerda, e que, conforme a autoridade apontada como coatora, não estaria em consonância com as normas estabelecidas no edital do concurso.

No julgamento em análise, a tese defendida pela maioria dos decisores foi no sentido de que os editais de concursos públicos não podem estabelecer restrições tendo em vista pessoas com tatuagens, com exceção das situações excepcionais, em caso de violação de preceitos constitucionais. Nesse sentido, ainda, destaca o Ministro Luiz Fux que essa criação de barreiras arbitrárias fere os princípios da isonomia e razoabilidade, além de que, a tatuagem, por si só, não deve ser entendida como transgressão ou atentatória aos bons costumes.

De acordo com Fux, a tatuagem representa uma autêntica forma de liberdade de manifestação do indivíduo, motivo pelo qual não deve sofrer malefícios em virtude disso, sob pena de violação dos princípios estabelecidos em âmbito constitucional, isto é, acabam acarretando a interferência do Poder Público para ver garantidos os direitos fundamentais que estão intrinsecamente ligados ao modo de como o ser humano desenvolve a sua personalidade.

Ponto também ressaltado no julgamento pelo Ministro é que a democracia não está restrita apenas a eleições livres, mas à participação de maneira ativa na formação de ideias na sociedade, que pode se materializar, por exemplo, através de uma tatuagem. Acrescentou que o Estado não pode se portar como adversário da liberdade de expressão, mas assegurar que os indivíduos se manifestem livremente, mesmo que seja através de figuras estampadas definitivamente em seus corpos.

Sob esse viés, o direito de se manifestar livremente, de acordo com Fux, é condição mínima que deve ser observada em um Estado Democrático de Direito, para que as pessoas desenvolvam sua personalidade no meio social.

O que se pode perceber do julgamento é que nunca as palavras de John Stuart Mill estiveram tão presentes na sociedade brasileira, quando este defendia que somos seres em progresso e só pode ser permitido o controle externo – o controle social – quando as ações disserem respeito a outras pessoas, mas nunca quando se estiver analisando apenas o bem do ser humano.

[…] o único objetivo pelo qual a humanidade pode, de forma individual ou coletiva, interferir com a liberdade de ação de qualquer de seus membros, é a proteção dela própria. E que o único propósito pelo qual o poder pode ser constantemente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade, contra a vontade deste, é o de prevenir danos para os outros membros. O próprio bem dele, seja físico ou moral, não é causa suficiente[1].

Conforme o pensamento de Mill, o que diz respeito a vida íntima não pode sofrer qualquer tipo de intervenção estatal; o ser humano é soberano em relação ao seu corpo e sua mente, só estando autorizada a ocorrer intervenção quando estiver em risco terceiro que será atingido.

Desta forma, não sendo a tatuagem, de forma alguma, causa suficiente para tolher a liberdade e a escolha por ingressar no serviço público, não pode – e agora com a anuência do Supremo Tribunal Federal – ser o indivíduo proibido de participar de concurso público em razão desta escolha pessoal.

Além disso, ao contrário de vários comentários vistos nas redes sociais desde a publicação da decisão na mídia brasileira, não são as tatuagens que forjam o caráter do ser humano, e inconcebível é que, em pleno Século XXI, ainda se pense de forma tão “pequena”, a ponto de defender que um profissional será competente ou não em razão de possuir, em seu corpo, um desenho que – para ele – signifique ou não, algo importante.

17 de agosto de 2016…. um dia que entra para a história. Em meio a tantos dias cinzentos para a democracia e a liberdade, eis aí um que deve ser lembrado como uma vitória da liberdade de cada um, contra o preconceito e a falta de entendimento de outros.

Notas e Referências:

[1] MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Tradução Ari R. Tank Brito. São Paulo: Hedra, 2010, p. 49.

Por Janaína Soares Schorr e Bruna Fernanda Bronzatti
Fonte: emporiododireito

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