'Fim da presunção de inocência não vai atingir quem a opinião pública deseja'

goo.gl/TwPklf | O defensor Carlos Paz, que está à frente da Defensoria Pública da União desde julho deste ano, recebeu a ConJur para esta entrevista um dia após o julgamento em que o Supremo Tribunal Federal decidiu que a prisão pode ser decretada antes do trânsito em julgado da condenação. A Defensoria Pública da União atuou no caso como amigo da corte.

Para ele, a virada jurisprudencial do STF, que em sua opinião vai afetar todo o sistema jurídico, é um retrocesso em relação às garantias constitucionais. “O Supremo passou uma mensagem preocupante ao interpretar daquela maneira um princípio pétreo da Constituição como a presunção de inocência. Valores como a celeridade foram colocados acima da presunção de inocência”.

Antes de entrar para a DPU em 2006, Paz advogava na área criminal. Em sua opinião, o novo entendimento não vai afetar quem parte da opinião pública clama que seja atingido pela possibilidade de prisão a partir de decisão de segunda instância: ou seja, os mais ricos e poderosos, que têm mais condições de recorrer.

Paz afirma que os reais prejudicados serão os mais pobres e vulneráveis, que não podem pagar advogados, justamente os principais clientes das defensorias públicas de todo o Brasil. “São pessoas que tiveram um precário acompanhamento em sede de inquérito com uma sentença condenatória em segundo grau tornando a execução daquela pena já provisória. Temos a evidência de casos em que há realmente defeito da avaliação da prova”.

O defensor criticou também as chamadas 10 medidas contra corrupção patrocinadas pelo Ministério Público. Ele diz que muitas delas afetam direitos e garantias fundamentais. “Não se deve tomar decisões permanentes para situações temporárias. A ‘lava jato’ foi o estopim da cruzada contra a corrupção, mas as leis não podem ser feitas de forma apaixonada”.

Ele destaca que a principal função do MP não é a de acusador, mas de garantidor da ordem jurídica constitucional. Por isso, continua, o patrocínio “um tanto açodado” das medidas pelo MP está sobrepondo uma função em relação à outra. “Qual é a medida que se tomará em prestígio ao direito de defesa?”, questiona o defensor.

Leia abaixo a entrevista:

O que o senhor achou da decisão do STF permitindo a prisão antes do fim do processo?

Carlos Paz — O resultado do julgamento em que atuamos como amicus curiae denota que é um tema que manteve a Corte Suprema dividida. Apesar disso, a decisão afeta todo o sistema jurídico e é um retrocesso em relação às garantias constitucionais. A opinião da Defensora Pública não poderia ser diferente porque somos uma reserva jurídica dos direitos e garantias fundamentais. O Supremo passou uma mensagem preocupante ao interpretar daquela maneira um princípio pétreo da Constituição como a presunção de inocência. Valores como a celeridade foram colocados acima da presunção de inocência. Portanto, o resultado do julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade é um revés. A infeliz coincidência foi essa virada jurisprudencial do STF ter acontecido no dia do aniversário da promulgação da Constituição de 1988.

Qual vai ser o impacto dessa decisão no trabalho da DPU?

Carlos Paz — Quem frequenta presídios, delegacias e cadeias sabe que o público afetado com essa decisão não é aquele que parte da opinião pública clama que seja atingido pela possibilidade de prisão a partir de decisão de segunda instância. Os defensores públicos sabem quem serão os reais prejudicados. Haverá uma dupla penalização porque a grande massa de pessoas que se submete hoje ao processo penal é vulnerável, excluída da camada favorecida da população, teve poucas oportunidades sociais que a afastasse do caminho criminógeno. São pessoas que tiveram um precário acompanhamento em sede de inquérito com uma sentença condenatória em segundo grau tornando a execução daquela pena já provisória. Temos a evidência de casos em que há realmente defeito da avaliação da prova. No julgamento foi lembrado que a Defensoria tem um alto grau de sucesso nos seus recursos porque só recorre daquilo que entende viável. O volume de processos no Judiciário embrutece e naturaliza certas coisas. E isso não pode acontecer. A celeridade de julgamento não cabe à defesa. Cabe a nós cobrar a razoável duração do processo.

O Brasil vive uma onda punitivista?

Carlos Paz — Acho que está havendo um espaço de discussão na interpretação das garantias e direitos fundamentais. Por que a presunção de inocência deve ser rediscutida 28 anos após a realização de uma constituinte que a consagrou como cláusula pétrea? A preocupação é o porquê dessa reinterpretação. O Direito é um fenômeno social, uma ciência social aplicada. Mas a opinião pública não pode pautar a interpretação de algo que é construído com muito tempo e estudo. O momento atual pode parecer mais policialesco, voltado a uma necessária reordenação do aparelho estatal investigatório persecutório. Não posso dizer que isso leva a uma onda punitivista. Nós da Defensoria queremos um excelente funcionamento do Estado com o respeito às garantias e direitos fundamentais. Um defensor não quer que não haja processo, quer que haja um processo dentro dos ditames que a Constituição estabeleceu. Um defensor ou advogado não pode vender uma absolvição. Ele tem que vender uma fiscalização técnica, competente e atenta para que o processo se conduza dentro dos ditames prévios colocados.

O discurso a favor da punição desvia o foco sobre a morosidade do Judiciário?

Carlos Paz — Há uma inversão de valores. O que se está privilegiando ao permitir a execução provisória da pena? A eficiência procedimental ou uma garantia constitucional? O cidadão não pode passar boa parte da vida na expectativa de punição. As pessoas que começarão a cumprir a pena de forma provisória vão entrar na conta do esquecimento porque o Judiciário não vai mais ter pressa para julgar esses casos. A flexibilização da presunção de inocência não vai mais despertar no julgador a necessidade de acelerar o julgamento do caso. A prisão não vai mais trancar a pauta dos tribunais superiores. Enquanto se fala de ordem pública, que o cidadão não consegue conviver com o sentimento de injustiça ao ver um suposto criminoso solto, aceita-se que uma pessoa possa ser presa antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Ou seja, cumprir pena sem ter confirmada a sua culpa. Não preciso falar sobre os traumas do cárcere. Quem passa 24 horas preso sabe exatamente o que significa uma execução provisória de pena.

Qual é a opinião do senhor a respeito das 10 medidas contra corrupção patrocinadas pelo Ministério Público?

Carlos Paz — As medidas não estão maduras para serem aprovadas, especialmente nesse momento com tantas mudanças no país. Não se deve tomar decisões permanentes para situações temporárias. A “lava jato” foi o estopim da cruzada contra a corrupção, mas as leis não podem ser feitas de forma apaixonada. Principalmente porque muitas delas afetam direitos e garantias fundamentais. A principal função do Ministério Público não é a de acusador. O órgão é primeiramente um garantidor da ordem jurídica constitucional. O patrocínio um tanto açodado das medidas pelo MP está sobrepondo uma função em relação à outra. O meu medo também é que com a aprovação das medidas se institucionalize uma forma de investigar que é frontal e diretamente contrária às garantias constitucionais e o direito de defesa. Vou dar um exemplo de quando o país legislou sobre a interceptação telefônica. O Código de Processo Penal diz o seguinte: quando não se conseguir determinada prova é possível pedir a interceptação telefônica. O que aconteceu na prática foi que a investigação se inicia pela interceptação telefônica. Ou seja, os investigadores se valeram de uma inovação legislativa para violar um direito constitucionalmente que é o da privacidade nos registros de dados.

A investigação se torna preguiçosa?

Carlos Paz — Eu não diria preguiçosa, mas cômoda. Não se investiga com tanto afinco porque se sabe que pode pegar alguma coisa depois na interceptação. Esse é só um exemplo da nossa preocupação do que pode se tornar as dez medidas. Essa é a pergunta que devemos fazer: qual é a medida que se tomará em prestígio ao direito de defesa? O Direito é dialética, ponto e contraponto. A defensoria pública brasileira faz questão de ser esse contraponto. Não é questionar a opinião pública ou defender bandeira disso ou daquilo. Somos o necessário contraponto dessas medidas porque estamos na tribuna adversa e estamos vendo os excessos de investigação e de aplicação de penas. Repito. O Ministério Público brasileiro não existe só para acusar. Antes de tudo ele é o garantidor, o defensor e preservador da ordem pública constitucional.

Os defensores públicos têm alguma queixa sobre a diferença de tratamento nos tribunais em comparação com os promotores ou procuradores?

Carlos Paz — Sim. E essa não é uma queixa só dos defensores. Vou dar um exemplo. Quem atua na defesa criminal já ouviu do seu assistido o seguinte: por que a instituição que me acusa senta ao lado do juiz e fica cochichando no ouvido dele? Por que o MP fala várias vezes no processo e a defesa só fala uma vez? Não é porque o defensor se acha maior ou menor, mas é um conceito de paridade que deve existir. Não sou eu que estou dizendo isso, é a Constituição. Também é impressionante a diferença de tratamento orçamentário, material e estrutural. Deve haver no mínimo uma equiparação das condições para que o cidadão tenha a melhor defesa e o estado, a melhor acusação. É a defesa de um conceito constitucional que foi consagrado quando todas as defensorias públicas do país passaram a ser autônomas: as dos estados em 2004 e a Defensoria Pública da União em 2013. Acho que esse é um ponto relevante que precisamos equalizar dentro do conceito constitucional de funções essenciais à Justiça.

E precisa de muito para ter essa paridade?

Carlos Paz — A Defensoria Pública da União não tem uma carreira de apoio. São terceirizados, servidores requisitados ou estagiários. Isso dificulta porque a estrutura ao redor do defensor potencializa seu trabalho e o resultado pode beneficiar mais pessoas. A emenda constitucional 80 diz que as defensorias públicas devem se interiorizar para garantir o acesso à Justiça em todo o território nacional. Mas a DPU precisa de orçamento e quadros para atingir esse objetivo.

A quem interessa uma Defensoria Pública enfraquecida? 

Carlos Paz — A quem não quer ver um país se desenvolver e ser mais justo. Interessa a quem não quer ver determinadas camadas da população a acessarem um direito que sequer sabem que têm esse direito. A nossa lei orgânica coloca dois pontos fundamentais: a extrajudicialidade e a educação em direitos. Sabemos pela história do nosso país que emancipar a população com conhecimento de seus direitos pode trazer preocupações a quem quer ter pretensões hegemônicas. Por isso, fazer defensoria em um país desigual é aceitar a condição de lutar contramajoritariamente. E tem mais. Erra quem pensa que o defensor é um agente de judicialização. Ao contrário, o nosso desejo é só judicializar aquilo que não conseguimos resolver de outra forma. Mas o sistema não ajuda, e isso é reconhecido por mentes muito brilhantes do nosso Judiciário, porque não está preparado para extrajudicialidade, a mediação e apreciação de causas coletivas. Sonho com o dia em que o defensor tenha que justificar o porquê de ter entrado com uma ação na Justiça.

Qual é a avaliação do senhor sobre a atuação dos advogados dativos?

Carlos Paz — A existência dos advogados dativos até hoje é a prova de que o Estado ainda não conseguiu estruturar a assistência jurídica integral e gratuita para aqueles que precisam. Os dativos são importantes, alguns processos andam porque eles existem. Não estou questionando o pagamento, mas a pergunta da DPU, com todo respeito à advocacia, é se os recursos que estão sendo destinados para a advocacia dativa são canalizados da forma como deveriam do ponto de vista do aprimoramento da política pública de acesso à Justiça. Não há continuidade, linha de defesa, estratégia processual. Precisamos aprimorar a política de assistência jurídica integral e gratuita, inclusive considerando esses recursos que são destinados hoje dentro das rubricas de tribunais, sejam estaduais ou federais, para o custeio de dativos. E tem mais um ponto. A atuação dativa é episódica. Isso preocupa os defensores e também os advogados. Já estive em audiência que o dativo disse "mas excelência, eu preciso de tempo para conhecer esse processo, para atuar bem" e ouviu do juiz que era “só mais um ato". Não é só um ato, às vezes é “o” ato, o momento da boa defesa, de fazer um requerimento fundamental para a obtenção da pretensão do assistido.

O defensor público deve receber honorários como acontece com os advogados públicos?

Carlos Paz — Não. Os únicos honorários que chegam à defensoria pública vão para fundos que são utilizados em prol da instituição. Não podemos ser tentados ou seduzidos por causas que gerariam mais honorários. Mas tem outra coisa também. O defensor público precisa ser melhor remunerado para não ficar seduzido por um mercado que paga muito mais para um bom profissional.

As audiências de custódia devem continuar a acontecer?

Carlos Paz — Sim, porque é um avanço em termos de direitos e garantias fundamentais, além diminuir a massa carcerária. Por isso, levar o suposto criminoso preso em flagrante ao juiz em até 24 horas para ele decidir se há a necessidade de encarceramento imediato é um passo a frente em termos de civilização. A política criminal e penitenciária começa a ser feita já nesse momento. E a figura do defensor é essencial porque a prisão em flagrante é hipossuficiência instantânea porque, mesmo que a pessoa possa constituir um advogado, ela está instantaneamente vulnerável.

O advogado criminalista tem sido criminalizado pela sociedade?

Carlos Paz — Advogar na área criminal exige do profissional uma consciência e retidão de função maior do que em outra área para não avançar a linha do permitido. Tem gente que faz isso dolosamente, outras podem cair nessa culposamente. Falta à sociedade esclarecimento sobre a atuação do advogado criminalista. Veja quantas vezes a ConJur tem que publicar artigos da Defensoria, da OAB, o Instituto do Direito de Defesa explicando a importância do direito de defesa no processo penal. E que isso não tem nada a ver como absolvição ou impunidade. A defesa existe para garantir a melhor aplicação da lei, ainda que seja uma pena justa, com a dosimetria adequada. Preocupa-me, por exemplo, quererem saber a origem dos honorários pagos aos advogados. É um grau de invasão preocupante numa relação privada e reduz a possibilidade do advogado de defesa.

Por Marcelo Galli
Fonte: Conjur

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