A conversão, de ofício, da prisão em flagrante em prisão preventiva é possível?

goo.gl/qMA8rD | A Secretaria de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça divulgou, no último dia 10 de julho, quatro novos temas na mais recente edição do projeto Pesquisa Pronta (cfr. http://www.conjur.com.br/2017-jul-10/conversao-flagrante-preventiva-dispensa-representacao-mp).

Em um deles, afirma-se que a decisão do Juiz que converte a prisão em flagrante em prisão preventiva dispensa o prévio requerimento do Ministério Público ou da autoridade policial.

Vejamos, então, o absurdo da tese.

O art. 282, parágrafo segundo, do Código de Processo Penal, dispõe, rigorosamente, em sentido contrário, ao afirmar “que as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes OU, QUANDO NO CURSO DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL, POR REPRESENTAÇÃO DA AUTORIDADE POLICIAL OU MEDIANTE REQUERIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO.”

Seria preciso uma redação mais clara?

Por óbvio, as medidas cautelares (e, com muito mais razão, uma prisão preventiva) só poderão ser decretadas de ofício pelo Juiz durante a fase processual (o que já é de se lamentar, inclusive – não deveria nem ser o caso também). Antes, no curso de uma investigação criminal (que é o caso ocorrente quando estamos diante uma prisão em flagrante – de natureza meramente pré-cautelar), a decretação de qualquer medida cautelar somente poderá ser decretada quando o Juiz é instado a fazê-lo, seja pelo Ministério Público, seja pela Polícia. Nesse sentido, a exigência é imposta pela lei processual penal expressamente, não havendo margem para dúvidas quaisquer.

Aliás, o impedimento decorre muito menos da lei, e muito mais do Sistema Acusatório, portanto, da própria Constituição Federal que o adotou.

Se já é sempre inoportuno deferir ao Juiz a iniciativa de medidas persecutórias durante a instrução criminal, imagine-se na fase de investigação criminal! O caso torna-se mais grave e o erro mais grosseiro.

É absolutamente desaconselhável permitir-se ao Juiz a possibilidade de, ex officio, ainda que em Juízo, decidir acerca de uma medida cautelar de natureza criminal (restritiva de direitos, privativa de liberdade, etc.). Admitir-se o contrário é sucumbir aos velhos paradigmas do Sistema Inquisitivo.

Portanto, essa posição do Superior Tribunal de Justiça demonstra um total desconhecimento e um perverso distanciamento dos postulados do Sistema Acusatório, que não se coadunam com a determinação pessoal, direta e de ofício de nenhumas medidas cautelares.

Com efeito, “este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas procesales. En la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem acentua Alberto Binder (Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43).

Nele estão perfeitamente definidas as funções de acusar, de defender e a de julgar, sendo vedado ao Juiz proceder como órgão persecutório (e, sobretudo, na gestão da prova), decretando aqui e acolá prisão preventiva, já que está proibido “al órgano decisor realizar las funciones de la parte acusadora” (Gimeno Sendra, Derecho Procesal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1987, p. 64).

Um dos argumentos mais utilizados para contrariar a afirmação anterior é a decantada busca da verdade real, verdadeiro dogma do processo penal medievo e “católico”. Ocorre que a “verdade” a ser buscada é aquela processualmente possível, dentro dos limites impostos pelo sistema e pelo ordenamento jurídico. Não se pode, por conta de uma busca de algo inatingível (a verdade…) permitir que o Juiz saia de sua posição “supra partes” (ou para além dos interesses das partes – como bem prefere o Mestre Jacinto Coutinho), a fim de (ele próprio e de ofício – como se de um deus tratasse-se – já que onisciente e onipotente), avaliar necessária, adequada e proporcional (em sentido estrito) a prisão preventiva.

A propósito, sobre a tal verdade material, ensina Ferrajoli, ser aquela “carente de limites y de confines legales, alcanzable con cualquier medio más allá de rígidas reglas procedimentales. Es evidente que esta pretendida ´verdad sustancial´, al ser perseguida fuera de reglas y controles y, sobre todo, de una exacta predeterminación empírica de las hipótesis de indagación, degenera en juicio de valor, ampliamente arbitrario de hecho, así como que el cognoscitivismo ético sobre el que se basea el sustancialismo penal resulta inevitablemente solidario con una concepción autoritaria e irracionalista del proceso penal”.

Para ele, contrariamente, a verdade formal ou processual é alcançada “mediante el respeto a reglas precisas y relativa a los solos hechos y circunstancias perfilados como penalmente relevantes. Esta verdad no pretende ser la verdad; no es obtenible mediante indagaciones inquisitivas ajenas al objeto procesal; está condicionada en sí misma por el respeto a los procedimientos y las garantías de la defensa. Es, en suma, una verdad más controlada en cuanto al método de adquisición pero más reducida en cuanto al contenido informativo de cualquier hipotética ´verdad sustancial´”.

Vê-se, portanto, que se permitiu um desaconselhável “agir de ofício” pelo Juiz. Não é possível adotar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, agora sufragado, em um sistema jurídico de modelo acusatório, pois, como já afirmado acima, lembra o Sistema Inquisitivo caracterizado por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”, ou seja, este sistema “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga” (Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, páginas 44, 45 e 604).

Há, efetivamente, uma mácula séria aos postulados do Sistema Acusatório. Com inteira razão Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (…) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime. (O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11).

De toda maneira, não há surpresas no front jurídico brasileiro. Seria estranho o contrário, ou seja, o Superior Tribunal de Justiça entender que o Juiz não poderia converter de ofício a prisão em flagrante em prisão preventiva. Mas, então, já seria exigirmos muito!

Por Rômulo de Andrade Moreira 
Fonte: emporiododireito

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