E quando a pena, no caso concreto, não encontra necessidade e utilidade? - Por Guilherme Kuhn

goo.gl/r679Aq | Como forma de estrear a Coluna, resolvi escrever sobre um princípio do Direito Penal bastante olvidado no dia a dia dos egrégios fóruns e tribunais: o preceito da irrelevância penal do fato.

Visando a melhor compreensão da matéria, a abordagem deste postulado ocorrerá a partir de singela análise de um caso prático, envolvendo uma torcedora gremista, que, no ano de 2014, teve a infelicidade de se tornar a principal notícia de, praticamente, todos os meios de comunicação do país.

Trata-se de um infeliz episódio em que uma garota teria ofendido racialmente o goleiro, à época, do Santos, de alcunha Aranha, chamando-o de macaco. A cena foi gravada por emissoras de televisão. O jogo foi interrompido e a torcedora identificada em meio a uma multidão de torcedores que praticavam a mesma conduta que ela.

Logo após o fato, foram divulgados, nacionalmente e internacionalmente, vídeos e imagens da vida pessoal da torcedora gremista, sem o seu consentimento.

O conteúdo dessas “informações” guardava, inicialmente, relação com o crime pelo qual ela passou a ser investigada (art. 140, §3.º, do CP). No entanto, não tardar, as notícias deixaram de ter cunho informativo, senão meramente sensacionalista.

A “investigada” se tornou facilmente um filão midiático. Fonte de renda e, ao mesmo tempo, de criação de estigmas e de inverdades.

A imprensa, que deveria encontrar o limite da liberdade de informação nos direitos fundamentais, passou por cima dos direitos da garota. Foram divulgados dados de sua vida privada, fotos íntimas e diversas notícias sem relação com o ocorrido.

Não bastasse, a torcedora, além de ter sido taxada de criminosa, foi ameaçada de morte e de ser estuprada por um grupo de pessoas que acreditam ser a injúria racial um delito mais grave do que o homicídio ou do que o estupro.

Ainda, com a intensificação das emoções causada pelo abuso midiático, a menina veio a ter a sua residência (outro direito fundamental) apedrejada e parcialmente queimada, vez que foi alvo de suposto incêndio criminoso.

Em um caso como este, há de se perquirir: no caso de condenação penal, que punição receberia a torcedora? Pois bem, na pior das hipóteses, ela seria submetida a uma pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa (art. 140, §3º, do CP), a qual, possivelmente, seria substituída por sanção restritiva de direitos, como prestação de serviços à comunidade e/ou prestação pecuniária, por exemplo.

Eis o busílis: será que os constrangimentos por ela sofridos, extra-oficialmente, não foram absurdamente mais graves do que a punição prevista em lei?

Até que ponto a condenação dela na seara penal se justificaria? Seria proporcional, necessária, adequada e útil? A quem? Para que finalidade(s)? Punir por punir (quem já foi punido)? Ou se estaria diante de um excesso punitivo?

É, justamente, nesse particular que não se pode olvidar do princípio da irrelevância penal do fato, que em nada se confunde com o princípio da insignificância (ou bagatela).

Com efeito, o postulado da insignificância (ou da bagatela) incide sobre as infrações penais bagatelares próprias, que são aquelas cuja conduta ou resultado, ou ambos, são irrelevantes ao Direito Penal, não se legitimando a incidência dele para a tutela do bem jurídico (ex. furto de um sabonete).

O princípio da bagatela, portanto, afasta a tipicidade material e, conseguintemente, a existência do próprio crime.

O mesmo não se procede com o preceito da irrelevância penal do fato, aplicado às infrações penais bagatelares impróprias, que são aquelas que nascem relevantes ao Direito Penal, por haver o desvalor da conduta e do resultado (GOMES, 2013) – isto é: se está diante, a priori, de um delito -, mas a punição, ao final do processo, não se justifica, revelando-se desarrazoada.

Não há, assim, o afastamento da tipicidade material; o delito está caracterizado. O que há é a desnecessidade de punir no caso concreto. A propósito, o escólio de Luiz Flávio Gomes (2013, p. 49):
infração bagatelar imprópria é a que nasce relevante para o Direito Penal (porque há desvalor da conduta bem como desvalor do resultado), mas depois se verifica que a incidência de qualquer pena no caso concreto apresenta-se totalmente desnecessária [...] O fundamento da desnecessidade da pena (leia-se: da sua dispensa) reside em múltiplos fatores: ínfimo desvalor da culpabilidade, ausência de antecedentes criminais, reparação dos danos, [...] o fato de o agente ter sido processado, o fato de o agente ter sido preso ou ter ficado preso por um período. Tudo deve ser analisado pelo juiz em cada caso concreto. [...]. (grifos apostos)
O artigo 59, caput, do CP, por sinal, prevê que a pena somente se justifica quando for necessária e suficiente para a prevenção e reprovação do crime, in verbis:
O juiz, atendendo [...]., estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
Destarte, considerando que a pena deve contar com necessidade e suficiência, bem como deve(ria) ser apta à reeducação do sujeito (art. 1º da LEP), e que os constrangimentos sofridos pela torcedora gremista são sobremaneira mais gravosos do que a própria pena prevista em lei e, inclusive, superam o mal do crime a ela imputado (o mal das “penas antecipadas”, in casu, supera o mal do delito), não se evidencia a necessidade de imposição de sanção penal, em especial porque consubstanciaria excesso punitivo, ante os constrangimentos que ela teve de suportar, de modo que a pena criminal não seria útil e tampouco necessária para a reprovação e prevenção do crime.

Sejamos razoáveis! Para quem: (1) perdeu o seu emprego; (2) teve a sua intimidade invadida; (3) foi considerada culpada antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória; (4) teve sua vida e a de sua família bisbilhotada e virada às avessas (violando o princípio constitucional da personalidade da pena); (5) foi ameaçada de morte; (6) foi ameaçada de ser estuprada; (7) teve a sua casa apedrejada e parcialmente incendiada; e (8) foi estigmatizada de criminosa e racista pela sociedade em geral, será que se faz necessária uma repressão para fins “preventivos” e “educativos” do Direito Penal?

Qual a necessidade de uma sanção de 1 a 3 anos de reclusão, ou alternativa, consistente em pena(s) restritiva(s) de direitos, se a autora da ação já sofreu diversas outras penalizações inequivocamente mais gravosas, sem chance de contraditório e ampla defesa, de forma antecipada e extra-oficial?
Assim, depreende-se que há casos onde a punição é desprovida de sentido, notadamente porque se torna desnecessária frente aos constrangimentos que a mera persecução penal, não raras vezes, impõe às pessoas, sendo cabível à espécie a incidência do postulado da irrelevância penal do fato, de forma conjugada com o princípio da desnecessidade da pena, cuja consequência deve ser a extinção da punibilidade do sujeito, possuindo a sentença, consoante GOMES (2013), a mesma natureza da decisão que concede o perdão judicial, não subsistindo qualquer efeito condenatório (Súmula 18 do STJ).

Sinala-se que estes dois preceitos encontram guarida no artigo 59, caput, do CP. Ademais, encontram supedâneo, também, no princípio constitucional da proporcionalidade, já que a reprimenda oficial do Estado, diante do contexto apresentado, configuraria excesso punitivo.

Suzana de Toledo Barros (2003, p. 78), a propósito, esclarece que o princípio da proporcionalidade determina que,
a adequação dos meios aos fins traduza-se em uma exigência de que qualquer medida restritiva deve ser idônea à consecução da finalidade perseguida [in casu, seria a utilidade, a necessidade e a suficiência da pena], pois se não for apta para tanto, há de ser considerada inconstitucional. (grifos apostos)
Logo, pode-se concluir, também, que a aplicação da pena em casos desprovidos de sua necessidade caracteriza induvidosa afronta a este princípio constitucional, tornando-se uma sanção inconstitucional, porquanto inidônea à satisfação de suas finalidades.

Não há adequação dos meios aos fins ao se privar um bem fundamental (p. ex. liberdade/tempo) sem haver necessidade.

Para encerrar, consigna-se: a repressão de toda e qualquer forma de racismo faz-se imperiosa. Todavia, isso não pode significar o massacre de alguém.

E a punição criminal, outrossim, não pode deixar de contar com proporcionalidade e razoabilidade. O princípio da irrelevância penal do fato encontra acolhida na ordem jurídica pátria e a sua aplicabilidade, diante dos excessos punitivos que se verificam no dia a dia, reclama urgência.

Espero que tenham gostado da Coluna, escrita por um Colorado de sangue e alma.
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REFERÊNCIAS

BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2003.

GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade. – 3. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

Por Guilherme Kuhn
Fonte: Canal Ciências Criminais

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