Os juízes detêm cargas probatórias no processo penal? - Por Guilherme Espíndola Kuhn

goo.gl/ycknBn | Hoje escrevo a Coluna em coautoria com o Advogado paulista Willian Rafael Gimenez. O assunto é importantíssimo: a iniciativa probatória do julgador.

O trabalho é desenvolvido com base na seguintes indagações: é admissível a produção de provas, de ofício, pelo magistrado? É legítimo que os juízes busquem, vale dizer, corram atrás da prova a ser produzida para a formação de sua própria convicção?

Noutros termos: os juízes detêm alguma carga probatória?

Inicialmente, é preciso ter em mente que, com a promulgação da Constituição da República de 1988, consagrada como “Constituição Democrática” ou “Carta Cidadã”, estabeleceu-se um modelo de processo penal que deve ser estruturado, lido e aplicado à luz das garantias fundamentais trazidas pelo novo regime constitucional.

O processo penal, de acordo com Aury Lopes Jr. (2013), desde o advento da Carta maior não mais pode ser concebido como um instrumento autoritário a serviço do poder punitivo, haja vista que o novel texto constitucional adotou o sistema acusatório, rompendo com a perspectiva inquisitiva que vigorava até então.

Nessa senda, considerando que o Código de Processo Penal foi insculpido em 1941, e, por consequência, contenha diversos dispositivos autoritários, em homenagem ao princípio da supremacia das normas constitucionais, faz-se imprescindível uma (re)leitura dos dispositivos processuais penais à luz da Constituição Federal e dos mais importantes Diplomas internacionais de direitos humanos, sob pena de não receptividade de algumas disposições, por incompatibilidade.

Flávia Piovesan (2013, p. 92-93), a propósito, salienta que “é no princípio da dignidade humana que a ordem jurídica encontra o próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, para a hermenêutica constitucional contemporânea”, assim como que os “direitos e garantias fundamentais são (…) dotados de força expansiva (…), servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico.”

Partindo dessa ótica, é de clareza solar a incompatibilidade dos mecanismos inquisitivos com a estrutura processual penal vigente.

Com efeito, no modelo inquisitório – cujos resquícios se verificam no atual processo penal brasileiro -, existia a figura do juiz-acusador, que, através de um procedimento sigiloso, além de formular a acusação, imputando ao acusado a prática de um delito (pecado), ainda, tinha a missão de decidir o caso.

Evidentemente, a imparcialidade do julgador restava prejudicada. Na verdade, era impossível, afinal, a autoridade que deveria decidir era, justamente, a mesma que acusava e produzia as provas da acusação!

Não precisamos discorrer muito sobre o assunto para perceber que as versões prestadas pelos acusados não tinham peso nenhum…

Eis uma semelhança com o atual cenário brasileiro: a palavra do réu, na grande maioria dos casos, é absolutamente desconsiderada. E o que é pior: entende-se que o acusado – apesar de se tratar, também, de um humano (às vezes é preciso relembrar alguns de que o acusado também é feito de carne e osso!) –  vale menos do que os outros humanos.

Não é à toa a existência de diversas condenações penais lastreadas unicamente na palavra da vítima (que, como o réu, não tem a obrigação de dizer a verdade!), ignorando completamente a negativa exarada pelo réu, como se tudo o que ele dissesse não tivesse significado ou relevância. Como se ele não tivesse voz nem vez.

Ainda, são diversos os casos em que se condenada, por exemplo, com fulcro somente na palavra de agentes públicos, sob o argumento de que gozam de fé pública, apesar da versão apresentada pelo réu.

O quadro é grave: em sede de investigação policial, na grande maioria dos casos, o relato fornecido pelo investigado não é levado em conta, sequer sendo objeto de averiguação!

Essa é uma característica temerária do processo penal brasileiro (e Aury Lopes Jr. já falou muito sobre ela), nitidamente inquisitiva: diante da notícia da suposta prática de uma infração penal, ao invés de se investigar considerando todas as hipóteses possíveis, a autoridade estatal primeiro decide e, depois, sem investigar outras possibilidades, busca elementos probatórios para amparar aquela decisão que foi tomada de antemão, antes mesmo de haver uma investigação.

O investigado/réu, dessa maneira, não vale nada. É como se fosse uma coisa, um objeto e não uma pessoa.

Vejam o quanto é inquisitório, na prática, o processo penal pátrio!

Não bastasse tudo isso, não são raros os casos em que o julgador, sem embargo de ostentar dos deveres de imparcialidade e de assegurar o respeito às regras do jogo, retira-se do plano de juiz – que deveria ser – imparcial e passa a fazer às vezes de acusador, atuando conjuntamente com o Ministério Público, determinando a produção de provas de ofício e correndo atrás de elementos que não existiam até então, tudo para legitimar a sua decisão que já fora tomada por antecipação.

Aqui fazemos um esclarecimento: como bem ensina Lopes Jr. (2013), a carga probatória, no processo penal, é toda do Ministério Público.

A um porque, ex vi legis, o acusado deve(ria) ser tratado e presumido como inocente para todos os fins. Logo, ele não tem nenhum dever de provar a sua inocência, porquanto ela deve(ria) ser presumida. É o Ministério Público, consectariamente, que deve(ria) provar que o réu não é inocente, que ele não atuou em legítima defesa, p. ex, demonstrando de forma inequívoca, em todos os casos, a autoria e a materialidade delitivas. 

A dois por uma razão bastante lógica: quem acusa é que deve provar. E não é o julgador que acusa: é o Ministério Público!

A problemática, portanto, está no ativismo judicial: quando o magistrado, que não deveria favorecer a acusação e tampouco a defesa, passa a correr atrás de provas, resta impossibilitada a garantia de um julgamento justo, democrático e imparcial.

Ora, se dúvidas persistem no julgamento da causa, o desfecho admissível somente seria um: a absolvição do acusado, com base no vetusto postulado (tão surrado em nossos egrégios fóruns e tribunais!) in dubio pro reo.

Noutros termos: não cabe ao julgador corrigir a falha da acusação, produzindo provas incriminatórias que o Parquet não logrou demonstrar, pois, se assim fizer, não estará obrando como um juiz de direito – que deveria ser imparcial -, senão como um verdadeiro órgão acusatório!

Com efeito, não se pode fazer confusão entre o dever de fundamentação das decisões judiciais com iniciativa probatória. Os juízes não detém cargas probatórias, mas sim o dever de motivar e justificar seus atos decisórios, sob pena de nulidade (art. 93, IX, da CF).

Trocando miúdos: os juízes não devem provar nada e muito menos correr atrás de elementos probatórios. Não obstante, devem fundamentar suas decisões com base nas provas que foram carreadas ao processo pelas partes, isto é, pela acusação ou pela defesa.

Juízes justiceiros e inquisidores não têm lugar no processo penal brasileiro, norteado pelo sistema acusatório, pela paridade de armas, pela presunção de inocência, pelo devido processo penal e pela prevalência do direito de liberdade.

Gestão da prova, prisões de ofício, atuações sem provocação das partes etc., são costumes inquisitórios que devem ficar no passado. É tudo o que não se quer hodiernamente.

A toda evidência, padece de nulidade absoluta o processo contaminado pelo ativismo judicial, diante da violação ao sistema acusatório, que deveria nortear o Direito Processual Penal em nosso Estado, que se pretende Democrático e Constitucional de Direito.

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REFERÊNCIAS

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10. ed.  São Paulo: Saraiva, 2013.

____________. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2013

Por Guilherme Espíndola Kuhn
Fonte: Canal Ciências Criminais

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