Limite penal: delação premiada precisa de uma nova lei para evitar atuais abusos

goo.gl/oZ7xH6 | A delação premiada, como já se disse[1], é um dos exemplos mais acabados de denegação à Constituição da República. O instituto, originário do common law dos EUA, não cabe racionalmente na estrutura, na teoria e na lógica inquisitorial de um sistema processual penal como o brasileiro, sendo que a sua prática ofende 1º) o devido processo legal, 2º) a inderrogabilidade da jurisdição, 3º) a moralidade pública, 4º) a ampla defesa e o contraditório, e 5º) a proibição às provas ilícitas.

Para perceber a flagrante inconstitucionalidade da Lei 12.850/13, não se faz necessário muito esforço. De qualquer modo, basta que se verifique os inúmeros problemas gerados com sua desastrada aplicação, justo pela sua estrutura faltosa, falha, incompleta e impossível de ser suprida — correta e devidamente — pela interpretação[2].

As faltas são tantas que a inconstitucionalidade desde logo se escancara em face do princípio da razoabilidade. Afinal, não é — e não é mesmo — razoável que o intérprete, para poder aplicar a lei minimamente, tenha que usurpar o papel do legislador e, de modo voluntarista, criar, no lugar da lei, um standard capaz de suprir a falta. Como se sabe e é primário, no mister interpretativo não cabe a função do Poder Legislativo. É, porém, o que se está a fazer, de maneira inconstitucional. Não há mera interpretação, e sim verdadeira criação de regras, que são atuadas como se decorrentes de preceitos fossem.

A questão terminológica também chama a atenção. Ora, o legislador da 12.850/13, quiçá para excluir a visão pejorativa que a palavra delação tem (em que pese seja exatamente o que faz o delator e, portanto, trata-se da palavra adequada), alterou-a para, no seu lugar, usar a palavra colaboração, de todo imprópria.

Como é primário, o colaborador só colabora porque, antes, delata e, assim, pretende-se retoricamente confundir o desavisado, ao dar um revestimento linguístico impróprio e desonesto, uma vez que o significado escolhido (colaborador) não dá conta do significado (delação). Serve, aqui, o alerta que já fazia William Shakespeare em Romeu e Julieta[3]: mesmo que você dê à rosa outro nome, ela continuará com seu perfume; sempre imaginando ser ela mesma e não uma sua representação. Em, sendo assim, há de se preferir — sempre — o significante delação, por ser correto.

Por outro lado, e, antes de tudo, para se importar a delação premiada, seria coerente mudar o sistema processual e, saindo do sistema inquisitório, adotar o sistema acusatório, a fim de que o juiz possa ocupar seu lugar constitucionalmente demarcado.

Vivencia-se, hoje, um supersistema inquisitório, que extrapola em vários sentidos os direitos e garantias individuais e os princípios que os fundam. Nesse sistema, o juiz torna-se o comandante supremo do combate ao crime, o que parece absurdo se se pensar na função jurisdicional e no princípio da imparcialidade (como equidistância das partes) assentado na Constituição da República. Daí sua inconstitucionalidade, para começar.

As “novas tecnologias” de obtenção da prova — dentre elas a delação premiada — têm oferecido a oportunidade que alguns precisavam para tentar “destruir os direitos e garantias individuais”, em verdade nunca aceitos por aqueles que se pensam acima das limitações legais. Justo por isso é imprescindível que o legislador delimite as regras que devem balizar a aplicação do instituto, sempre em concordância estrita com a CR e as leis, não deixando nenhum espaço, se possível, para arbitrariedades.

Urge que o Poder Legislativo cumpra o seu papel constitucional e com a qualidade necessária legisle sobre a matéria — quiçá ouvindo por precaução os especialistas, em face da complexidade do tema —, de modo a se tentar compatibilizar o instituto da delação premiada com o sistema inquisitório que se pratica, em detrimento da CR. Enfim, precisa-se de uma lei nova que regule a matéria e não permita os abusos que estão sendo praticados.

No fundo, o correto mesmo seria a refundação do processo penal[4], com uma reforma global à qual já aponta — embora com suas deficiências — o Projeto de Lei do Senado PLS 156/2009, do qual esboço de anteprojeto foi lançado por uma comissão de juristas criada sob a presidência do senador Garibaldo Alves, hoje tramitando na Câmara dos Deputados como Projeto de Lei 8.045/2010.

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[1] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Delação premiada: posição contrária. In Jornal Carta Forense. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/delacao-premiada-posicao-contraria/13613>. Acesso em: 14/11/2017.
[2] O professor Alexandre Wunderlich (que vem trabalhando nos acordos de delação premiada) recentemente denunciou, juntamente com João Daniel Rassi e Rogério Fernando Taffarello, 12 questões, todas elas marcadas por aquilo que são os abusos da delação premiada e que apontam justamente na direção de que se está “interpretando” para além da lei, de modo a se fazer aquilo que é função exclusiva do Poder Legislativo, ou seja, a produção legislativa. V. WUNDERLICH, Alexandre; RASSI, João Daniel e; TAFFARELLO, Rogério Fernando. Doze perguntas sobre a delação premiada: em busca da segurança jurídica. In Boletim Jurídico Jota. Disponível em: <https://jota.info/especiais/doze-perguntas-sobre-a-colaboracao-premiada-10112017>. Acesso em: 14/11/2017.
[3] “What’s is a name? That which we call a rose by any other name would smell as sweet” (“O que é um nome? Se dermos um outro nome àquilo que nós chamamos de rosa ela continuará com seu tão doce perfume”).
[4] CHOUKR, Fauzi Hassan. A refundação do processo penal brasileiro: para além do discurso reformista. In Boletim de artigos da Escola Superior de Direito Público. Disponível em: <http://esdp.net.br/a-refundacao-do-processo-penal-brasileiro-para-alem-do-discurso-reformista>. Acesso em: 6/12/2017.

Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
Fonte: Conjur

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