Conheça a saga de um apenado que se formou em Direito e agora luta para exercer a profissão

goo.gl/ekWZp9 | No dia 22 de fevereiro, Lincoln Gonçalves Santos, 33, protocolou na OAB/SC a solicitação para a expedição do seu certificado de aprovação no 24º Exame da Ordem. O momento foi especial para este bacharel em Direito que levou seis anos para concluir o curso na Univali de São José, na Grande Florianópolis, e duas outras tentativas frustradas de passar nas provas da entidade. A conquista se torna ainda mais cara quando se sabe que as atribulações enfrentadas pela média dos estudantes extrapolaram o ambiente acadêmico no caso de Santos. Afinal, não é todo preso que, ao perseguir o sonho da ressocialização, completa o Ensino Superior e comprova-se apto a exercer a profissão que sonha para a sua vida desde o momento em que entrou numa penitenciária, aos 20 anos de idade, para cumprir pena de duas décadas e meia de reclusão por latrocínio (roubo seguido de morte). Isso quer dizer que a saga de Santos para se tornar o advogado que o seu conhecimento já lhe permite ser está longe de terminar: com os direitos políticos cassados por ainda estar cumprindo pena, ele prepara-se para brigar pela carteira profissional e pela revisão, na Justiça, de sua condenação.

Santos começou a estudar Direito no segundo semestre de 2010. A descoberta de que poderia frequentar as aulas aconteceu durante visita da juíza Denise Helena Schild de Oliveira à Colônia Penal Agrícola de Palhoça. Nesse dia, ele a abordou e questionou se, como magistrada, acreditava que um apenado poderia mudar de vida. Segundo Santos, ela respondeu que sim, estudando ou trabalhando.

“Aí eu disse que já tinha encaminhado um pedido de estudo e perguntei por que ela não tinha assinado ainda. E ela me surpreendeu dizendo que já tinha assinado. Na semana seguinte, a autorização chegou.”

A partir daí, a família de Santos se mobilizou – uma tia se prontificou a pagar as mensalidades e a mãe conseguiu efetuar a matrícula com base no bom histórico escolar do filho. A notícia, porém, não foi bem recebida dentro da Colônia Penal.

“Quando soube que poderia começar a estudar, fui até um agente penitenciário para dizer que a partir de agora ele teria de me autorizar a sair para ir à faculdade. Ele me hostilizou. No dia seguinte, vou para a faculdade e quem eu encontro na sala de aula? O agente. Eu fiz que não o conhecia. Depois, na Colônia, ele veio me pedir desculpa pelo tratamento.”

O semestre transcorreu com Santos acordando às 6h30 de segunda a sexta-feira, embarcando às 7h num coletivo da linha Bela Vista até o Kobrasol, em São José, assistindo às aulas até as 11h e retornando para a Colônia Penal no ônibus das 12h30. Na penitenciária, fazia os trabalhos de aula à mão, porque não ganhou permissão de usar computador, internet ou celular. Os livros, que teve de pegar emprestados na biblioteca da faculdade, eram revistados quando ele chegava da aula.

“A primeira semana foi boa. Os colegas achavam que eu era apenas um guri que vinha de um lugar pobre falando um monte de gírias. Mas depois o agente contou para o pessoal quem eu era, de onde eu vinha. E aí a relação mudou. Metade da sala se afastou. Entre os professores, foi mais tranquilo. Eles foram compreensivos e não me tratavam de forma diferente dos demais.”

Mais um atraso de vida


No primeiro semestre de 2011, quando Santos estava na segunda fase, um incidente disciplinar quase arruinou o seu sonho de estudar Direito. Por ter ido para a faculdade num dia em que não houve aula (feriado emendado), mas permanecido na biblioteca do campus fazendo trabalho de Filosofia na companhia de um colega, o juiz da Vara de Execuções Penais considerou o fato uma quebra do acordo e determinou a regressão do regime. Com isso, Santos perdia o direito de estudar.

“Argumentei na audiência que a faculdade avisava cancelamento de aulas por SMS ou e-mail, que eu não tinha, e que se o campus estivesse fechado, eu teria voltado para a Colônia Penal, mas não deu. Então tive de recorrer com um agravo de execução que levou nove meses para ser apreciado. Nesse período, voltei para o regime fechado e ao inferno da penitenciária de Florianópolis, vivendo tudo aquilo de novo: rebelião, tiro de borracha, um querendo matar o outro, sem livros. Perdi dois semestres.”

De acordo com Santos, na apreciação do recurso o desembargador autorizou seu retorno ao regime  semiaberto reconhecendo, entre outros pontos, que “fazer trabalho acadêmico é uma forma de estudo”. Como, no momento em que regrediu para o fechado, faltavam apenas três meses para que conquistasse o direito a progredir para o aberto, sua advogada fez o pedido e ele pôde se mudar para a casa da família, assumir um emprego durante o dia e frequentar novamente a universidade, no segundo semestre de 2011, agora com permissão de uso de computador, internet e telefone celular.

“Foi com a turma que conheci nesse retorno que me formei em 2016. É o pessoal com quem tenho meu maior elo de amizade. E foi curioso porque descobri que já havia histórias que corriam sobre mim no curso: do preso que ia à aula de uniforme, que uma viatura me levava e me buscava etc. Aí os colegas ficavam surpresos quando eu falava que esse aluno de que tanto falavam era eu.”

Santos conta que, desde que entrara no curso, passou a acalentar o desejo de convidar a juíza que o autorizou a estudar para participar de sua banca de trabalho de conclusão de curso (TCC). Não como uma homenagem, dizia, mas para chamar a atenção de todos para a importância de magistrados que demonstravam aquele tipo de sensibilidade. Quando o semestre para a apresentação do TCC já se aproximava, ele consultou a coordenadoria do curso e recebeu autorização.

“Fui pessoalmente no Fórum fazer o convite. Ela me atendeu prontamente. Ainda sonho em fazer ela me entregar a carteira da OAB.”

Revisão do caso


Ao todo, Santos concorreu em três exames da OAB. No primeiro, ainda durante o nono semestre da faculdade, passou na primeira fase e falhou na seguinte. Já formado, participou mais uma vez, e de novo teve sucesso na prova objetiva, mas rodou na discursiva. No fim do ano passado, conseguiu aprovação nas duas etapas. Considera-se alguém “fora das estatísticas”. Agora, ele quer que a OAB reconheça o seu direito de exercer a profissão.

“A OAB acredita na ressocialização, que o preso merece oportunidades e ser reinserido na sociedade, mas no Estatuto tem um artigo que fala de idoneidade moral e título de eleitor. Eles precisam ver que estou sendo prejudicado desde o começo do meu processo. Estou condenado por um latrocínio que não existiu, sem roubo e sem voz de assalto.”

Esta é a linha central da argumentação que Santos e seu orientador na faculdade, o professor Rodrigo Mioto, defenderão no documento de revisão criminal que o bacharel irá protocolar nas próximas semanas no Tribunal de Justiça de Santa Catarina. O objetivo é que o crime pelo qual Santos foi condenado em 2005 passe de latrocínio para homicídio, com pena que, acredita, possa ficar entre 13 e 15 anos. Dessa forma, ele cumpriria a pena completa em mais um ou dois anos.

Como no TJ a preferência nos casos de pedidos de revisão criminal é dada a réus presos, a solicitação de Santos, réu solto, pode demorar até dois anos para ser avaliada. E se também for recusada – outros conselhos de profissões regulamentadas por lei também exigem o título de eleitor para registrar profissionais, como os de Medicina, Administração, Engenharia, Psicologia, entre outros -, ele só poderá exercer a profissão legalmente a partir de 2031 (pena extinguida em 2029, mais dois anos de reabilitação), quando tiver 49 anos de idade.

OAB reafirma necessidade de documentos


Por meio de assessoria de imprensa, a OAB/SC afirma que “não há como antecipar ou prever decisões acerca de casos individuais, e até corriqueiros” de pedidos de inscrição nos quadros da Ordem. A entidade ressalta que todos os pedidos devem cumprir o que determina o Art 8º da Lei 8.906/94 – Estatuto da Advocacia, que exige título de eleitor e idoneidade moral para o exercício da profissão. A lei considera que “não atende ao requisito de idoneidade moral aquele que tiver sido condenado por crime infamante, salvo reabilitação judicial”.

A OAB/SC afirma ainda que os pedidos passam “pelo crivo da 1ª, 2ª, 3ª ou 4ª Câmara Julgadora, órgãos colegiados competentes para a análise e julgamento de cada caso” e que “somente após esse processo e em hipótese de deferimento é que se dá a confecção das credenciais profissionais de advogados (as), cuja entrega acontece, prioritariamente, em sessão solene na sede da Seccional e/ou das Subseções correspondentes, sob o registro de juramento profissional”.

Por Felipe Lenhart, especial para o JusCatarina
Fonte: www.juscatarina.com.br

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