Luiza Bairros: "A reação contra o racismo pode virar o jogo"

http://goo.gl/lpCdc5 | Doutora em sociologia pela Michigan State University (EUA),  Luiza Helena de Bairros, 61 anos, atual ministra da Secretaria de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial, parece adotar uma técnica especial para conversar com a imprensa. Não costuma  fugir às perguntas mais polêmicas, mas responde tudo sempre no mesmo tom, quase como uma cadência musical. Entre uma resposta e outra, geralmente, respira um pouco mais fundo, solta um "vamos lá", e segue em frente. Para essa gaúcha, que fez boa parte da trajetória política e acadêmica na Bahia - para onde  se mudou em 1979,  onde concluiu o mestrado em Ciências Sociais, na Ufba, e onde assumiu, em 2008,  a Secretaria  Estadual de Promoção da Igualdade Racial da Bahia (Sepromi) - serenidade é a chave. Bacharel em Administração Pública e Administração de Empresas, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e especialista em Planejamento Regional, pela Universidade Federal do Ceará, Luiza afirma, sem meias palavras,  e de forma categórica, que já não existe mais espaço para o racismo, seja dentro dos estádios ou nos programas de TV, e reconhece as conquistas do Movimento Negro, mas  admite que, no âmbito do governo, ainda há muito para ser feito até que os negros possam assumir definitivamente o protagonismo na mídia.

Pela primeira vez uma novela angolana é exibida no Brasil e,  fato inédito,  com um elenco no qual predominam atores negros, algo difícil de ser visto no país. O que a senhora pensa sobre a iniciativa?

Penso que precisamos refletir mais sobre a natureza dessa dificuldade. Como você diz, é "algo difícil de ser visto no país", e isso traz consequências na vida de milhões de pessoas, pois toda a sociedade é privada do direito de se ver representada na sua rica diversidade. Com a novela, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) querem contribuir para que as pessoas tenham a oportunidade de viver essa experiência inédita. Quando se fala em mídia, o debate sobre diversidade e pluralismo não pode ficar restrito ao registro meramente quantitativo da presença negra. Há muitas armadilhas embutidas nisso. Ao contrário do que se imagina, já existe uma produção cultural negra, contemporânea de qualidade, mas que tem pouco espaço em nossos meios de comunicação, e isso inclui o que tem sido feito em países africanos. Windeck  abre a possibilidade para que a Seppir promova pesquisas que avaliem a opinião do público sobre produções como essa.

A inserção estereotipada dos negros nos programas de TV sempre foi combatida pelos movimentos sociais. A personagem Adelaide, do Zorra Total, foi considerada uma ofensa às mulheres negras.  Como a Seppir atua nesses casos?

As pessoas reagem cada vez mais às agressões e ofensas racistas, e essa é uma mudança importante que parece estar deixando para trás o tempo em que o racismo era vivido de forma solitária, silenciada. A reação é que pode ajudar a virar o jogo. A ouvidoria da Seppir tem recebido e encaminhado as denúncias aos órgãos que têm a obrigação de investigar e se posicionar. A dificuldade   é que os veículos de comunicação sempre invocam a liberdade de expressão. E fazem isso de forma equivocada, ignorando o fato de que estamos falando de direitos de cidadania; mais que isso, estamos afirmando nossa dignidade. A essa altura, ninguém mais deveria ter dúvida de que a liberdade de expressão tem como limite a dignidade do outro. Pela ouvidoria, temos dialogado com o Ministério Público, a Defensoria Pública e  outros órgãos de promoção da igualdade racial nos estados e municípios. A boa notícia é as empresas de comunicação já começam a recuar de algumas decisões.

O que pode ser feito para evitar que personagens depreciativos à imagem dos negros se perpetuem na TV?

Eles não irão se perpetuar, temos que trabalhar com essa certeza. Fica cada vez mais evidente que pessoas negras estudam, viajam, são empreendedoras, amam, consomem, planejam o futuro. O racismo é que  tenta fazer de nós outra coisa. Por isso, têm crescido as denúncias de discriminação  pelos meios de comunicação, indicando que a rejeição racista à cor da pele e aos valores culturais não pode mais decretar o banimento da imagem. Podemos até dizer que a TV está mudando, com a moça do tempo,  o apresentador que aparece eventualmente na bancada do noticiário, o ator ou atriz, a publicidade de órgãos públicos. Mas são inserções que não satisfazem à expectativa  e geram novas tensões, porque o espaço   ainda é insuficiente diante do protagonismo social e cultural de mulheres e homens negros e do efeito das cotas no número de jovens formados por escolas de arte e de comunicação. Em maio, a Seppir realizou um seminário que mostrou como as novas tecnologias têm sido utilizadas criativamente pela juventude negra. Os rostos que a grande mídia ainda se recusa a mostrar estão circulando nos meios alternativos, em inúmeros produtos criados pelos negros. Quem acha que esta força vai ser contida por muito mais tempo se engana. Redondamente.

Apesar do elenco de maioria negra, a série "Sexo e as Negas" foi criticada como preconceituosa, mesmo antes da estreia.  Como a senhora vê essa série?

É um caso emblemático, exatamente pelo fato de ter provocado reações mesmo antes da estreia. Pelo que vejo, as reações contrárias foram provocadas pelos sentidos do título, que reforçam o estereótipo da mulher negra como objeto sexual, e pelo conhecimento que as pessoas já tinham de criações anteriores do autor. Para ficar em um exemplo, o fato de muitas pessoas conhecerem Sai de Baixo, que até hoje é exibida na TV fechada, certamente, contou  para que  formassem opinião previamente. Na presença do racismo, tudo fica mais complexo, especialmente quando o sexo entra na equação. Veja que a dominação sexual da mulher negra, escravizada, até já serviu de base para teses sociológicas de grande prestígio! O racismo tem se apropriado do corpo negro de muitas formas para produzir inferioridade e reforçar imagens de controle. Então, que reação poderíamos esperar? Antes da estreia, a ouvidoria da Seppir recebeu  sete denúncias quanto ao suposto caráter racista da série. Notificada, a emissora reafirmou suas escolhas quanto ao título e ao tema. Um pouco antes de o terceiro capítulo ir ao ar, a ouvidoria já contava quase 200 denúncias, ao mesmo tempo em que um debate acirrado dominava as redes sociais, com o protagonismo evidente das mulheres negras. Tudo isso foi  importante para mostrar o peso da opinião do público negro, que não vai mais consumir entretenimento de forma passiva. Dá para entender por que a notícia de que a série não terá uma segunda temporada é tida por muitos como vitória, em mais uma batalha pelo controle da representação da pessoa negra.

De que modo a Seppir atua, por meio de políticas públicas, no controle da representação da pessoa negra pela mídia?

A abordagem da Seppir tem a ver com uma proposição mais ampla de reversão das imagens negativas associadas ao negro. Na prática, isso se desdobra em pelo menos três dimensões. A primeira trata das questões da cultura e da produção artística, como forma de contribuir para a formação de um ponto de vista próprio e de maneiras de fazer cultura e arte. Daí resultaram editais, em parceria com o Ministério da Cultura, envolvendo artes cênicas, literatura, cinema e também manifestações culturais de comunidades quilombolas e de matriz africana. A experiência foi muito boa, tanto que agora está sendo continuada pela Fundação Cultural Palmares. A segunda tem a ver com a chamada mídia negra. A Seppir vai lançar editais específicos para reforçar essas iniciativas. E a terceira dimensão é mais relacionada à mídia convencional.  Já demos início a uma cooperação com o Unic, que é o Centro de Informações das Nações Unidas no Brasil, em um projeto que integra o contexto da Década Internacional dos Afrodescendentes. Vamos juntar a capacitação de jovens jornalistas negros com o desenvolvimento de estratégias para ampliar a presença dos temas raciais nos veículos de comunicação. Sem falar da cooperação com a EBC, que, para além da veiculação da novela Windeck, abre um leque amplo de possibilidades de estímulo à circulação de conteúdos audiovisuais feitos por negros.

O Estatuto da Igualdade Racial prevê cotas para a participação de negros na publicidade e programas produzidos pela União, como isso é fiscalizado?

Na verdade, a negociação final do projeto do Estatuto da Igualdade Racial no Congresso, em 2010, suprimiu as cotas, inclusive no capítulo VI, sobre os meios de comunicação. As definições são  voltadas para a criação de oportunidades de emprego para artistas e técnicos em filmes, programas e peças publicitárias. A Seppir e o Ministério do Trabalho formaram uma comissão que, entre outras atribuições, propõe a regulamentação da questão. É bom lembrar que o estatuto não confere ao setor público  competência para fiscalizar o cumprimento dessas disposições em empresas privadas. Para que a legislação tenha efeito nesses casos, é preciso trabalhar junto às entidades que representam emissoras de TV, produtoras e agências de publicidade. Mesmo assim, penso que teremos certa margem de manobra para que esses setores sejam induzidos a cumprir o estatuto.

Outro assunto que tem dividido opiniões é o debate em torno da redução da maioridade penal. Esta seria a saída para diminuir a violência no país?

No início da república, a responsabilidade penal no Brasil era fixada em 9 anos de idade! Hoje, condicionar o enfrentamento da violência à redução da maioridade penal é um evidente retrocesso e só serve para mascarar as múltiplas causas da violência. Esse é um tema bem ao gosto de posições identificadas com extremistas conservadores. Tem gente que insiste em relacionar os negros à maldição de Caim. Seríamos uma descendência amaldiçoada e condenada à servidão, numa leitura bíblica enviesada que tem tido espaço até na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Durante o processo eleitoral, o fato de ter nascido no Nordeste foi motivo para que se desqualificassem as opções políticas e eleitorais de milhões de brasileiros. Todo esse anacronismo, essa manipulação, vem reforçar o entendimento de que a questão social é uma questão de polícia. Esse pensamento está orientado para ampliar as exclusões sociais, não para resolver o que quer que seja. Alguém tem dúvida de que a redução da maioridade penalizaria muito mais os adolescentes negros?

As pessoas estão se sentindo mais seguras para expor seu racismo?

Uma pessoa se sente encorajada a externar atitudes racistas, diante das câmeras, porque está convencida de que  muitos outros compartilham suas crenças e valores. A vida não é novela em que só o personagem mau-caráter pratica o racismo abertamente, enquanto os demais  arregalam os olhos. Em Porto Alegre, no momento da agressão ao goleiro Aranha, os policiais se omitiram, o juiz se omitiu. Felizmente, ele enfrentou a situação de forma digna e anulou o quadro de omissão e cumplicidade que estava desenhado, com a participação  de parte da mídia.  Depois desse episódio, a Seppir não só teve contato com a direção do Grêmio, como se reuniu com representante da CBF para discutir um conjunto de iniciativas. Nossa intenção é preparar melhor os clubes para enfrentar atos discriminatórios de imediato, no próprio estádio,  com juízes e policiais treinados.

A certeza da impunidade leva as pessoas a cometerem o crime de racismo?

Não, a prática do racismo não se reduz à questão da impunidade. Ela  é  mais complexa e está ligada ao fato de que herdamos um país construído com base na exploração de africanos e de seus descendentes. E veja que essa dominação sempre se apoiou na negação da humanidade das pessoas. Após a abolição, fora as investidas dos movimentos negros, a sociedade nunca enfrentou de verdade esses valores pervertidos. Ainda estamos buscando implantar uma educação que repudie os preconceitos, em vez de reafirmá-los. De modo geral, os meios de comunicação convencionais  estão longe de confrontar valores que tentam desumanizar a maioria da população. É uma teia secular de interesses voltados para a manutenção de privilégios. É por isso que considero reações como a de Aranha de imensa grandeza moral numa situação profundamente imoral. O modo firme como ele reagiu no primeiro jogo e a resistência que  opôs no segundo jogo, às vaias e agressões de praticamente todo o estádio, nos enchem de esperança.

Por Maíra Azevedo
Fonte: atarde.uol.com.br
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