O direito ao esquecimento não dá a ninguém o direito a reescrever a história

http://goo.gl/djaUHL | Desde que, no início de 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia determinou aos europeus a possibilidade de pedir a retirada de dados pessoais na internet a partir ao direito de esquecimento, esse direito constitucional, tão debatido por juristas em todo o mundo, passou a ser confundido com a remoção irrestrita de dados pessoais da Internet.

O tribunal europeu determinou que o Google deveria remover de seus resultados de buscas links para páginas com informações pessoais a respeito de cidadãos europeus que não quisessem ver seus nomes associados a fatos que eles próprios considerassem inadequados, irrelevantes ou descontextualizados. A decisão provocou uma onde de pedidos de remoção e inflamou debates mundo afora.

No Brasil é comum o conceito do direito ao esquecimento ser considerado uma consequência do direito constitucional à privacidade (art. 5º, X). A interpretação já era essa desde antes da decisão do tribunal europeu. Por conta disso, o direito ao esquecimento é invocado em muito processos contrapondo os direitos à imagem e à vida privada aos direitos à plena liberdade de expressão e de informação.

É essa interpretação do conceito (uma consequência do direito à vida privada, intimidade e honra) que impera no texto final do Projeto de Lei 215/15, o #PLEspião, com votação prevista para a próxima terça-feira, 6/10, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados.

O texto a ser apreciado pelos deputados, na próxima terça-feira, amplia disposições do artigo 19º do Marco Civil da Internet, comprometendo seu objetivo de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, ao incluir o parágrafo 3º-A e modificar a redação do parágrafo 4º.

Diz o Marco Civil que o o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. O parágrafo terceiro garante que “causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais”.

Se aprovado como está o #PLESpião estende o texto do Marco Civil da seguinte forma:
§ 3º-A – O interessado ou seu representante legal poderá requerer judicialmente, a qualquer momento, a indisponibilização de conteúdo que associe o seu nome ou imagem a crime de que tenha sido absolvido, com trânsito em julgado, ou a fato calunioso, difamatório ou injurioso.
§ 4º – O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º e § 3º-A, poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, havendo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.
Desde a aprovação do Marco Civil, especialistas em direito digital advogam a necessidade de uma ponderação aprofundada e cuidadosa, para que a restrição de conteúdos não seja feita sem qualquer critério, ferindo a liberdade de expressão. Muitos acusam o Marco Civil de ter simplificado demais o processo ao incluir a possibilidade de recurso a juizados especiais. O que o #PLEspião tenta fazer é facilitar ainda mais as possibilidades de pedidos remoção, incluindo entre eles os pedidos de remoção de conteúdos referentes a processos (ainda sem julgamento) por calúnia, difamação e injúria. Tome liminar…

Como evitar que dispositivo tão abrangente seja invocado para objetivos nada nobres, como a retirada de notícias sobre fatos de interesse público dos sites de jornais, revistas, redes de TV e seus respectivos perfis nas redes sociais? Como bem lembra Gustavo Binenbojm, em artigo publicado no site Jota em outubro de 2014, há informações que podem soar inadequadas aos ouvidos de quem se sinta atingido, mas cuja divulgação seja do mais cristalino interesse social.

Então como determinar quem tem direito ao esquecimento?

Antes de mais nada é preciso lembrar que o Direito ao esquecimento “consiste na faculdade de a pessoa não ser molestada por atos ou fatos do passado que não tenham legítimo interesse público”.

Anterior à decisão do tribunal europeu e à aprovação do Marco Civil da Internet, o Enunciado 531, do Centro de Estudos do Judiciário do Conselho da Justiça Federal (CJE/CJF), já afirmava que o direito ao esquecimento não deve garantir a ninguém a prerrogativa de apagar fatos ou reescrever a própria história.  Deve apenas assegurar a possibilidade de se discutir o uso que será dado a fatos pretéritos. Mais especificamente o modo e a finalidade com que serão lembrados.

Gustavo Binenbojm ressalta que nem sempre é possível distinguir, de antemão, os dados que se tornarão irrelevantes e poderão ser descartados, daqueles que serão essenciais à preservação da memória coletiva e da historiografia social. “O passado não é o que passou, mas o que ficou do que passou”, diz ele.

Diante deste cenário, personalidades públicas, como políticos, podem pretender que determinados fatos de suas vidas sejam esquecidos? Muitos dirão, com absoluta certeza, que não.

Alguém que cumpriu pena e quitou sua dívida com a sociedade tem o direito de dissociar seu nome do crime cometido no passado? Outros tantos dirão que não, também.

Parece simples discernir quando aplicar o direito ao esquecimento, não é mesmo? Não…

No Brasil, por exemplo, dois anos após o cumprimento da pena ou da extinção da punibilidade por qualquer motivo, o autor do delito tem direito à reabilitação. Depois de cinco anos, afasta-se a possibilidade de considerar-se o fato para fins de reincidência, apagando-o de todos os registros criminais e processuais públicos.

A pessoa que pratica atos ilícitos ou reprováveis moralmente no passado, mas passa a ter uma vida honesta e exemplar, tem direito ao esquecimento, uma vez que errar faz parte da natureza humana. Mas se continuar a ter uma conduta reprovável…

Meses atrás, em um debate sobre direito digital no Insper, a advogada Juliana Abrusio, do escritório Opice Blum Abrusio Vainzof, deu a todos nós presentes ao evento uma verdadeira aula sobre o princípio do direito ao esquecimento. Segundo ela, o direito ao esquecimento é o direito de ver apagadas certas informações que, no passado, foram divulgadas legitimamente e licitamente, mas que com o passar do tempo deixaram de ser de interesse público ou histórico, continuando a atingir a dignidade da pessoa, comprometendo a sua vida em sociedade.

Conteúdos que associem o nome ou a imagem de alguém a um crime do qual essa pessoa tenha sido absolvida, inocentada, com trânsito em julgado, cabem nessa definição? Embora controverso, o entendimento que prevalece no texto do PL 215/15 é o de que sim, cabem.

E, nesse caso, como exercer o direito ao esquecimento?

Há quem advogue que, na Internet, ele se aplique, única e exclusivamente, à supressão de links que levem a conteúdos publicados durante o processo no qual a pessoa absolvida tenha sido arrolada como réu,  jamais à remoção dos próprios registros jornalísticos e históricos. Apagar os registros seria censura incompatível com o Estado Democrático de Direito. Mas a mera supressão do link, em muitos casos, já não é por si só uma censura? Afinal, a fonte mais relevante de informação sobre um indivíduo está nos buscadores, certo? E também nas redes sociais.

Muitos advogam que pedidos de remoção de registros jornalísticos e históricos devam ser analisados caso a caso, levando-se em conta a finalidade de se relembrar fatos antigos e a pertinência disso para o debate público. E que somente registros suprimidos por seus autores sejam removidos dos mecanismos de busca.

A Diretiva 95/46/CE, que regulamenta o tratamento de dados pessoais na União Europeia, garante o direito de retificação e até a remoção de informações inverídicas, incorretas ou incompletas. A norma, no entanto, não estabelece o direito de apagar notícias verdadeiras. Afinal, o direito ao esquecimento não pode impedir o exercício do direito à memória.

Dois destaques ao PL 215/15,  que ainda devem ser apreciados, endereçam o direito ao esquecimento. Deputados do PT e do PSOL acreditam que o direito de resposta, e não a retirada de conteúdos da internet, é que deve ser aplicado em casos de  fato calunioso, difamatório ou injurioso.

E muitos defensores das liberdades de expressão e informação na rede defendem que o direito ao esquecimento seja decidido única e exclusivamente por decisões judiciais, após julgado o mérito da questão.

A discussão vai longe!

E o PL 215/15 não é o único

Importante lembrar que o debate a respeito do direito ao esquecimento não se limita ao PL 215/15. Outros dois projetos de lei em tramitação no Congresso tratam do tema. Um deles é o Projeto de Lei 1.676/2015, de autoria do ex-senador Vital do Rêgo (PMDB/PB), que tem apensado nele o PL 2712/2015, de autoria do deputado Jefferson Campos (PSD/SP), aguarda deliberação na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI). O outro, PL 7.881/2014, é de autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, aguarda parecer do relator na Comissão de Defesa do Consumidor (CDC).

Eles também têm sido objeto de muito debate entre advogados e juristas brasileiros. Por isso convém ficar de olho na votação do PL 215/15 na CCJ, na próxima terça-feira, e nos debates que se seguirão na votação em plenário.  Eles servirão de base para apreciação desses outros dois PLs.

Fonte: idgnow.com.br

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