Será que o furto de celular deixou de ser crime no Brasil? - Por Pedro Magalhães

goo.gl/WJNbaC | Circula por aí a notícia de que o roubo, numa clara confusão com o furto, de celular não é mais crime no Brasil (STF decide: Roubar celular de até R$ 500 não é crime). Mas será que é isso mesmo? Podemos furtar um celular e essa conduta não será mais considerada criminosa?

Para responder a essa pergunta é necessário analisar a decisão que supostamente teria considerado atípica a conduta de furtar celular, senão vejamos:
PENAL. HABEAS CORPUS. PACIENTE CONDENADO PELO CRIME PREVISTO NO ART. 155, CAPUT, COMBINADO COM O ART. 61, I E ART. 65, III, TODOS DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CONDENAÇÃO ANTERIOR. POSSE DE ENTORPECENTES PARA USO PRÓPRIO. ART. 16 DA LEI 6.368/1976. APLICAÇÃO. POSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA.
I – O paciente foi condenado pela prática do crime descrito no art. 155, caput, combinado com o art. 61, I, e art. 65, III, todos do Código Penal, pelo furto de aparelho celular, avaliado em R$ 90,00 (noventa reais).
II – Nos termos da jurisprudência deste Tribunal, a aplicação do princípio da insignificância, de modo a tornar a ação atípica, exige a satisfação de certos requisitos, de forma concomitante: a conduta minimamente ofensiva, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a lesão jurídica inexpressiva.
III – Assim, ainda que conste nos autos registro de uma única condenação anterior pela prática do delito de posse de entorpecentes para uso próprio, previsto no art. 16 da Lei 6.368/1976, ante inexpressiva ofensa ao bem jurídico protegido e a desproporcionalidade da aplicação da lei penal ao caso concreto, deve ser reconhecida a atipicidade da conduta. Possibilidade da aplicação do princípio da insignificância. Precedente.
IV – Ordem concedida para trancar a ação penal. (HC 138697 / MG – MINAS GERAIS; Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI; Julgamento: 16/05/2017; Órgão Julgador: Segunda Turma; Publicação: DJe-113 DIVULG 29-05-2017 PUBLIC 30-05-2017; PACTE.(S): FERNANDO LUCÍLIO DA COSTA; IMPTE.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO; PROC.(A/S)(ES): DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL; COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA)
Depreende-se da transcrição anterior que o indivíduo foi acusado de praticar o crime de furto simples (artigo 155, caput, do Código Penal), tendo subtraído um aparelho celular avaliado em R$ 90,00 (noventa reais).

Nesse ponto, importante diferenciarmos o furto do roubo, pois em ambos os tipos penais há a subtração de coisa alheia móvel.

Assim, enquanto no furto a subtração ocorre sem a utilização de violência ou grave ameaça, para caracterizar o roubo é necessário que o bem tenha sido subtraído com violência ou grave ameaça.

Exemplo clássico de furto: o indivíduo vai até um supermercado e, enquanto passeia pelos corredores, subtrai alguns produtos, coloca em sua bolsa e sai do local sem realizar o pagamento dos mesmos.

Um exemplo clássico de roubo: a vítima está em seu veículo parada no trânsito, surge um indivíduo e realiza a abordagem, determinando a saída da vítima, sob pena de morte.

No caso tratado na decisão se trata de um furto, logo, cometido sem violência ou grave ameaça.
Entendido isso, passamos para o princípio da insignificância.

Apesar de não estar expressamente previsto em lei, essa é uma forma de se considerar a conduta atípica, ou seja, apesar da subtração da coisa alheia móvel, a conduta é considerada irrelevante para o Direito Penal e não merece a sua atuação, principalmente por ser (o Direito Penal) a ultima ratio.

O raciocínio é que não se deve mobilizar a máquina custosa, delicada e ao mesmo tempo complexa como é o aparato de poder em que o Judiciário consiste para não ter o que substancialmente proteger ou tutelar.

Consta na referida decisão 04 requisitos para reconhecimento e aplicação do princípio da insignificância, quais sejam:
(1) a conduta minimamente ofensiva, (2) a ausência de periculosidade social da ação, (3) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e (4) a lesão jurídica inexpressiva.
Nesse caso, o que está em jogo não é apenas o tipo de bem subtraído, mas várias condições que levam a crer pela insignificância da ação.

Assim, ausente, no caso, a tipicidade material, que consiste na relevância penal da conduta e do resultado típico em face da significância da lesão produzida no bem jurídico tutelado pelo Estado.

Necessário destacar que não é simples e fácil reconhecer o princípio da insignificância e que existem várias “barreiras”, como a contumácia do acusado, o valor do bem, o tipo de crime, dentre outras.

Quanto a contumácia do réu, tem-se entendido que é um fator que impossibilita o reconhecimento da insignificância da conduta, por não se tratar de um comportamento isolado, com reduzido grau de reprovabilidade.
PENAL. PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FURTO. INTEMPESTIVIDADE DA APELAÇÃO MINISTERIAL. FUNDAMENTO INATACADO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 283/STF. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. RÉU CONTUMAZ. INAPLICABILIDADE.
[…] II – Na linha da jurisprudência desta Corte, ressalvado o meu entendimento pessoal, mostra-se incompatível com o princípio da insignificância a conduta ora examinada, haja vista que o agravante é agente contumaz (precedentes). Agravo regimental desprovido. (STJ – Processo: AgRg no AREsp 841564 SP 2016/0019294-0; Orgão Julgador: T5 – QUINTA TURMA; Publicação: DJe 01/08/2016; Julgamento28 de Junho de 2016; Relator: Ministro FELIX FISCHER)
Além do mais, quanto ao valor do bem para reconhecimento do princípio da insignificância, não há consenso:
HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO INCIDÊNCIA. VALOR DOS BENS SUBTRAÍDOS. AUSÊNCIA DE INEXPRESSIVIDADE DA LESÃO. DISTINÇÃO ENTRE FURTO INSIGNIFICANTE E FURTO PRIVILEGIADO. ORDEM DENEGADA. […] 4. O valor dos bens subtraídos não pode ser considerado ínfimo de modo a caracterizar a conduta como minimamente ofensiva. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais destacou que “os objetos subtraídos valiam R$ 140,11, sendo que a época dos fatos o salário minimo vigente perfazia o valor de R$ 380,00, tratando-se o montante subtraído de quase metade de seu importe”. Precedentes.
(STF – Processo: HC 118264 MG; Orgão Julgador: Segunda Turma; Partes: WAGNER TEIXEIRA DE SOUSA, DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA; Publicação: DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014; Julgamento: 5 de Agosto de 2014; Relator: Min. TEORI ZAVASCKI)
1. In casu, o bem não foi tido como de pequeno valor, pois representa 25% do valor do salário mínimo à época dos fatos. (STJ – HC 110.055/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJe de 9/11/2012)
Além disso, consta ainda que o valor da res furtiva que se tentou subtrair da vítima – R$ 75,00 -, ultrapassa 10% (dez por cento) do salário mínimo vigente à época do crime (R$ 678,00 em 2013), não podendo ser considerado desprezível a autorizar a incidência do princípio da insignificância. Dessa forma, na linha de precedentes desta Corte, ressalvado o meu entendimento pessoal, mostra-se incompatível o princípio da insignificância com sua conduta. IV – Por outro lado, verifica-se que foi fixado o regime semiaberto para início de cumprimento da pena, considerando que o paciente tem maus antecedentes, inclusive com reincidência específica, não preenchendo o requisito previsto no art. 33, § 2º, alínea c, do Código Penal. Habeas corpus não conhecido.
De igual modo, não se costuma reconhecer o princípio da insignificância em furtos qualificados (art. 155, §4º, do Código Penal), mas também não existe um consenso, sendo que o próprio STF já reconheceu a impossibilidade como a possibilidade:
HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. FURTO QUALIFICADO. ÍNFIMO VALOR DA RES FURTIVA. ROMPIMENTO DE OBSTÁCULO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE.
[…] 2. Não tem pertinência o princípio da insignificância em crime de furto qualificado cometido mediante rompimento de obstáculo. Precedentes. 3. Ordem denegada. (STF – Processo: HC 121760 MT; Orgão Julgador: Primeira Turma; Partes: JOACILDO PEREIRA DA SILVA, DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, DEFENSOR PÚBLICO-GERAL FEDERAL, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA; Publicação: DJe-215 DIVULG 31-10-2014 PUBLIC 03-11-2014; Julgamento: 14 de Outubro de 2014; Relator: Min. ROSA WEBER)
PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO PELO ABUSO DE CONFIANÇA – ART. 155, § 4º, II, DO CP. APLICAÇÃO DA FIGURA PRIVILEGIADA DO § 2º DO ART. 155 – PRIMARIEDADE E PEQUENO VALOR DA COISA. COMPATIBILIDADE. PRECEDENTES. 
1. O furto qualificado privilegiado encerra figura harmônica com o sistema penal no qual vige a interpretação mais favorável das normas penais incriminadoras, por isso que há compatibilidade entre os §§ 2º e 4º do art. 155 do Código Penal quando o réu for primário e a res furtiva e de pequeno valor, reconhecendo-se o furto privilegiado independentemente da existência de circunstâncias qualificadoras. Precedentes: HC 96.843, Relatora a Ministra Ellen Gracie, 2ª Turma, DJe de 24/04/2009; HC 97.034, Relator Min. Ayres Britto, 1ª Turma, DJe de 07/05/2010; HC 99.222, Relatora Ministra Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJe de 089/06/2011; e HC 101.256, Relator Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, DJe de 14/09/2011). 
2. In casu, os requisitos legais reclamados pelo § 2º do art. 155 do Código Penal para o reconhecimento do furto privilegiado restaram reconhecidos: primariedade e pequeno valor da coisa subtraída (aproximadamente 100 reais), não devendo prevalecer, no ponto, por contrariar a jurisprudência desta Corte, os acórdãos da apelação e o ora impugnado, porquanto afastaram a aplicação da figura privilegiada sob o singelo fundamento de sua incompatibilidade com a qualificadora do § 4º, II, do art. 155 do Código penal. 
3. Recurso ordinário provido para restabelecer a sentença Supremo Tribunal Federal. (STF – RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 115.225 DISTRITO FEDERAL; RELATOR: MIN. LUIZ FUX; PACTE.(S): ANTONIO ARTAGNAN DE LIMA; RECTE.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL; PROC.(A/S)(ES): DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS; RECDO.(A/S): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA)
Desse modo, o que ocorreu não foi a liberação do furto de celular, mas o reconhecimento de que aquela conduta específica analisada pelo STF na decisão era insignificante para o direito penal.

Por fim, fica claro que isso não significa que o furto de celular ou de qualquer outro bem deixou de ser crime, mas que, dependendo do caso concreto, pode-se reconhecer o princípio da insignificância, desde que preenchidos os requisitos necessários para tanto.

Um grande abraço e não se deixe enganar por notícias tendenciosas.

Por Pedro Magalhães Ganem
Fonte: Canal Ciências Criminais

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