Voz da experiência: juiz diz que mudou forma como vê a vida depois de fazer justiça Itinerante

goo.gl/KZfF13 | São quase 16 anos de trabalho com a vertente mais social da justiça brasileira, a Justiça Itinerante. Por isso, o juiz Cezar Luiz Miozzo tem contato direto com muita gente, e pessoas de todos os tipos e classes sociais. Quando os dois ônibus que comanda estacionam nos pontos de atendimento, ele costuma saber o que vai encontrar por lá, mas tem dias que se depara com situações anormais.

Ele teve de aprender a ser uma pessoa um pouco mais fria quando se refere ao seu trabalho mas mesmo assim Cezar é flagrado por diversas vezes ajudando a quem procura pelos serviços de sua comarca. "A gente se depara com gente passando por dificuldade financeiras, por exemplo, que não tem dinheiro para voltar pra casa, para comprar um passe. E é impossível ignorar essas situações".

Vindo de uma família humilde do sul do país, ele foi o primeiro juiz de seu núcleo familiar e o primeiro dos filhos a se formar. Sua mãe era praticamente analfabeta e seu pai tinha o que pode ser considerado hoje como Ensino Fundamental Básico. Então para ele nunca foi um choque lidar com a diversidade e com humildade. Mesmo assim ele se vê hoje uma pessoa melhor, que aprendeu a enxergar além de seu círculo social. "Eu digo que é preciso ter perfil para trabalhar no itinerante, tem que gostar".

Workaholic por opção, ele e sua equipe fazem pela comunidade e sentem o peso do trabalho que tem para quem espera pelo serviço itinerante. Em alguns casos de ponto facultativo decretado pelos superiores, eles escolhe trabalhar. Hoje de férias, ele assume vir para o posto mesmo nesse período, para ajudar sua equipe. E por conta dessa experiência, Cezar participa do Voz da Experiência de hoje do Lado B.

"Eu estou nesta função desde abril de 2003, então vai fazer 16 anos de trabalho com a justiça itinerante. Meu colega que deu o pontapé neste cargo se aposentou, e eu me interessei pelo cargo pois já achava que estava na hora de mudar de rumo, trabalhava no Juizado das Moreninhas antes.

Cezar no atendimento a população no ônibus da Itinerante, que fica todo o período da manhã em postos nos bairros da Capital. (Foto: Acervo Pessoal)

Nossa competência tem limitações por sermos itinerantes, então ou eu resolvo o problema da pessoa ou a oriento. Muitas vezes isso acontece sequencialmente. As vezes chegam lá sem saber quais documentos, por exemplo, é necessário para um determinado serviço, e eu oriento a pessoa, que volta as vezes na mesma manhã com tudo certinho.

Os ônibus precisam estar nos pontos ás 7h, então eu acordo lá pelas 4h30 e costumo mesmo ser o primeiro a chegar aqui. Esse é um dos pontos da rotina dessa comarca, que se difere bastante da justiça do Fórum, por exemplo. E nesse tempo de trabalho eu já escutei algumas pessoas dizerem que procuram pelos nossos serviços porque não tem roupa para ir ao Fórum, por exemplo, porque não se sente bem com aquele visual engravatado. Aqui a pessoa pode vir de chinelo, de bermuda, que será atendido normalmente. Eu também não uso terno, uso uma camisa, uma calça social, e está suficiente.

Vim de uma família humilde, nasci no Paraná, meus pais não eram formados, trabalhavam basicamente.Mas deixaram de herança que era por meio dos estudos que a gente poderia alcançar algo na vida, e foi o que fui. Lembro que na época da faculdade, na antiga FUCMAT, eu não achava capaz ser juiz. Até que vi alguns colegas conseguindo passar no concurso e entendi aquilo que meu pai dizia.

Enfim, então nunca foi um choque pra mim lidar com essa diversidade de pessoas. Mas refletindo noto que hoje eu me tornei uma pessoa que consegue enxergar além do meu círculo social. Eu vejo que as famílias que dispõe das maneiras mais diversas possíveis, por exemplo, e vai muito além do que o padrão que tinha anteriormente na minha vida.

Em relação às situações com as quais a gente se depara, são muitas e é difícil elencar as mais tocantes. Acho bacana dizer que eu fiz muito reconhecimento de maternidade, pra não citar só o serviço constante de reconhecimento de paternidade, que nós fazemos também.

Parece estranho ter que reconhecer quem é a mãe de uma pessoa mas é que há muitos anos, quando os casais se separavam e formavam novas famílias as crianças eram registradas no nome só do pai. Então tiveram muitos adultos que nos procuravam que ficaram por anos sem o nome de suas mães nos documentos. Era uma alegria para a família finalmente ver os dois nomes ali.

Ah, teve um caso muito legal, falando ainda de divórcio, de uma senhora que nos procurou, que estava separada, mas ainda não divorciada já há muito tempo. Ela deu entrada nos papeis e disse que o seu ex marido morava em Minas Gerais. Eu a comuniquei que seria preciso ele vir até aqui assinar a documentação. Quando ele chegou os dois voltaram a morar juntos e desistiram do divórcio.

Foi em um dos nossos ônibus também que aconteceu o primeiro casamento homoafetivo do Estado. Foi muito bacana e, claro, uma cerimônia diferente pra nós.

Ainda sobre casamentos, teve uma situação em que uma assistente social me procurou e me informou de um casal que o homem estava internado, em estado terminal, e estava preocupado com sua companheira. Eles nunca haviam se casado mas já eram, propriamente dizendo, casados. A situação era que o senhor por estar acamado não podia se dirigir a local algum para assinar os papeis e deixar a esposa amparada. Nós fomos até o hospital e fizemos o trâmite.

Eu me deparo por vezes com o caos familiar dos brasileiros. Ainda hoje, vejo meninas de 20 anos com 4 filhos, por exemplo, e elas entram na justiça para pedir uma pensão de R$ 300,00 para dois filhos, então é realmente alarmante enxergar essas situações diariamente.

Temos casos de avós que cuidam dos seus netos, buscam a guarda, pois os pais da criança se envolveram com tráfico e estão presos. Isso é rotineiro conosco.

Agora, sobre casos incomuns, consigo me lembrar de dois em específico. Teve um senhor que chegou para se casar, deu entrada nos documentos, levou duas testemunhas, como de praxe, que alegaram que os dois moravam juntos há pelo menos um ano, conforme as nossas exigências, tudo dentro do padrão.

Acontece que certo tempo depois, não sei dizer ao certo, uma mulher nos procurou dizendo que ela era a mulher com que o senhor havia alegado se casar. Ela soube porque ele próprio disse a ela que tinha se casado com ela. Então ele teve o trabalho de falsificar os documentos, levar uma outra mulher, para isso. O casamento foi anulado e o caso foi para a Polícia, claro.

O outro caso foi o de um uruguaio, que chegou para se casar com a mulher com qual já dividia uma vida, tinha um filho. Sei que na hora de dar entrada nos documentos, eles não batiam. Eles retornaram pra casa e eu fui tentar entender o que estava acontecendo. Contatei esse senhor e, de imediato, ele me disse que era foragido da polícia em seu país de origem, falsificou documentos no Brasil e vivia assim. Sua esposa e seu filho não sabiam disso, foi um choque pra eles. Acredito que ele foi deportado para o Uruguai, mas também foi uma situação que nós não tivemos mais acesso porque vai pra outras instâncias".

Por Thaís Pimenta
Fonte: www.campograndenews.com.br

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