Crimes permanentes e ingresso na residência pela autoridade policial - Por Pedro Barbosa

goo.gl/9F22F3 | Como se sabe, a Constituição Federal, em seu rol de direitos e garantias fundamentais, assegura a inviolabilidade do domicilio, ressalvados os casos de flagrante delito, desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial (artigo 5º, inciso XI).

Assim, em se tratando de processo penal, a busca domiciliar somente pode ocorrer nas seguintes hipóteses: com autorização do morador; com mandado judicial (nesse caso, a diligência deve ocorrer durante o dia), ou, ainda, em caso de flagrante delito, prescindindo, nesse último caso, de mandado judicial ou autorização do morador.

Pois bem, antes de prosseguir, cumpre trazer o conceito do que se entende por flagrante, que, segundo Nucci (2009, p. 587), significa:
"Tanto o que é manifesto ou evidente, quanto o ato que se pode observar no exato momento em que ocorre. […]. O fundamento da prisão em flagrante justamente é poder ser constada a ocorrência do delito de maneira manifesta e evidente.
Nessa perspectiva, a doutrina já adotou o entendimento de que nos crimes de posse em geral, tais como de drogas ou armas de fogo, o flagrante é permanente e se protrai no tempo, na medida em que, enquanto mantida a posse do ilícito, o delito estaria sendo praticado, a possibilitar o ingresso na residência sem o competente mandado de busca.

Ocorre que tal estado de flagrância há de ser previamente constatado, no sentido conceitual já citado, não podendo derivar de uma mera suspeita, fruto da imaginação da autoridade policial, tampouco de uma denúncia anônima, pois, nesse caso, o agente público ingressaria para investigar, o que exige a prévia expedição do mandado.

A linha entre a legitimidade da ação do agente público, e eventual abuso de autoridade ou delito de violação de domicílio, reside, assim, no sucesso ou não da diligência praticada ao arrepio da lei, nesse jogo inconstitucional onde os fins justificam os meios.

Dito de outro modo: não pode o agente público, ao abrigo de um ‘pseudo’ estado de flagrância, esvaziar a garantia constitucional da inviolabilidade e invadir o domicílio sob a mera suspeita de que ali se pratica delito permanente, justificando sua conduta com posterior apreensão do ilícito.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal ao julgar o Recurso Extraordinário 603616, com repercussão geral, firmou a tese nos seguintes termos:
"A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados.
Fundadas razões exige o Supremo, e não meras conjecturas ou ilações, sob pena de não se fazer presente o elemento subjetivo da excludente atinente ao estrito cumprimento do dever legal na conduta do agente público, tornando a busca domiciliar ilícita e, por conseguinte, todas as provas que dela advirem, face à ilegalidade ocorrida em momento anterior.

Isso porque a mesma Constituição que garante a inviolabilidade domiciliar veda expressamente a admissão de provas ilícitas no processo (artigo 5º, inciso LVI), sendo que o Código de Processo Penal vem no mesmo sentido, conceituado o que seria essa prova ilícita. O referido diploma processual cuidou, ainda, por inserir tratamento próprio em relação às provas ilícitas por derivação, senão vejamos:
"Art. 157.  São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
§1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. –Grifei.
A lógica da vedação é simples e, segundo Souza (2014, p. 43), procura mandar duas mensagens claras. A primeira aos órgãos encarregados da produção das provas, qual seja:
"Não adianta utilizar-se de meios escusos para alcançar a qualquer custo uma pseudo-verdade processual, pois seus ilícitos esforços serão em vão”; a segunda, deve ressoar em toda a sociedade a ideia de que “na relação Estado e indivíduo não pode vigorar a máxima maquiavélica de que os fins justificam os meios, mas sim, deve vigorar a ética do devido processo legal.
Nada obstante o entendimento acima exarado, muitos policiais ainda atuam à margem da legalidade, fazendo com que a nulidade macule toda a diligência e as provas dela obtidas, aumentando, ainda mais, a sensação de impunidade.

Àqueles que atuam com tal proceder um terceiro recado: no processo penal, parafraseando Aury Lopes Jr, forma é garantia, garantia de limitação do poder estatal e de efetividade dos direitos fundamentais, não podendo, onde os valores que estão em jogo são sobremaneira caros, os fins justificarem os meios.

E, ao contrário do que muitos pensam, dar efetividade às garantias constitucionais não é referendar a impunidade, mas sim limitar arbítrios e abusos estatais em consagração a direitos fundamentais conquistados a duras penas.

Ao revés, prolongar a sensação de impunidade é fadar à nulidade atos heroicos praticados ao arrepio das regras limitadoras da ação estatal e do devido processo legal.

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REFERÊNCIAS

LOPES JR, Aury. Direito processual penal – 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal – 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

SOUZA, Sérgio Ricardo de. Manual da prova penal constitucional – 2 ed. Curitiba: Juruá, 2014.

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Pedro Câmara Barbosa
Acadêmico do 10º Período do Curso de Direito da Faculdade do Litoral Paranaense – ISEPE Guaratuba, Estagiário do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná - Gabinete da Vara Cível e anexos da Comarca de Guaratuba.
Fonte: Canal Ciências Criminais

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