Qual é o papel do juiz nas audiências de instrução e julgamento? Por Jordan Vilas Boas Reis

goo.gl/rXVFYB | Busca-se, no processo, o conhecimento daquilo que não se conhece (o fato), razão pela qual pode ser referido como uma atividade recognitiva. Devido ao fato de a prova ser o meio pelo qual o conhecimento é levado ao processo, tem-se por necessário o estudo de como as provas são introduzidas nele e de quais sujeitos processuais são responsáveis por tal atividade (POLI, 2016).

São reconhecidos dois sistemas processuais penais, o inquisitório e o acusatório, e a forma de diferenciá-los reside na identificação de seus princípios unificadores (inquisitivo e dispositivo), momento em que a gestão da prova deve ser vista como critério determinante para tal análise.

Aqui se explica que a noção de sistema acima referida advém de Immanuel Kant, o qual o compreendia como um conjunto de conhecimentos ordenados por um princípio, uma ideia fundante, de forma que a perspectiva kantiana de sistema se fundamenta na “unidade do princípio”. A partir disso, tem-se como essência dos sistemas processuais penais os seus princípios unificadores.

Desse modo, a ideia de um “sistema misto” não se sustenta, por não possuir um princípio unificador próprio. O fato de ser “misto” significa que, na essência, o modelo é inquisitório ou acusatório, recebendo a adjetivação por conta dos elementos (secundários) que de um sistema são emprestados a outro (COUTINHO, 2001).

Portanto, se o processo tem por finalidade a reconstituição de um fato passado, sobretudo por intermédio da instrução probatória, a forma pela qual se realiza a gestão da prova identifica o princípio unificador.

Se ao juiz cabe a gestão da prova, está-se diante de um sistema inquisitório. Por outro lado, se a gestão da prova está nas mãos das partes, verifica-se o núcleo fundante de um sistema acusatório.

Para o sistema acusatório, não é suficiente a mera existência de partes, mas devem ser elas as protagonistas do conhecimento. Se o protagonismo é do próprio magistrado, e não das partes, o princípio unificador é inquisitivo (COUTINHO, 2017).

O Código de Processo Penal de 1941 entregava a gestão da prova ao juiz, de forma que se difundiu a mentalidade inquisitória. Porém, diante da Constituição de 1988, que acolheu o sistema acusatório, surgiram dilemas sobre a modificação ou não a respeito da colheita da prova oral. Para superar as divergências, promoveu-se a alteração legislativa pela Lei 11.690/08, como esclarece Alexandre Morais da Rosa (2017, p. 816):
"A modificação legislativa implementada pela Lei 11.690/08 dirimiu quaisquer dúvidas em torno da colheita da prova oral, restando bem assentado descaber ao julgador a inquirição das testemunhas, sendo-lhe facultada a complementação de pontos controvertidos somente após a realização de perguntas pelas partes (nos moldes do cross examination norte-americano ou do exame incrociato italiano).
Com a referida lei, o artigo 212 do CPP sofreu alteração substancial, passando a dispor que: “as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente às testemunhas, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”. Além disso, o parágrafo único do citado artigo prevê que “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”.

O papel do juiz


Assim, o juiz deixa de ter o papel de protagonista na realização das oitivas para ter uma função completiva, subsidiária. Não terá mais o juiz (ou não deveria ter), como no modelo anterior, “aquela postura proativa, de fazer dezenas de perguntas, esgotar a fonte probatória, para só então passar a palavra às partes, para que, com o que sobrou, complementar a inquirição” (LOPES JUNIOR, 2018, p. 459).

Neste novo modelo, o juiz abre a audiência, compromissando (ou não, de acordo com o caso) a testemunha, e passa a palavra para a parte que a arrolou. Caberá à parte interessada na produção da prova efetivamente produzi-la, sendo o juiz, nesta ocasião, o fiscalizador do ato, filtrando perguntas ofensivas, indutivas, sem relação com o caso ou que já tenham sido respondidas pela testemunha.

Diferentemente do que fora afirmado pelos adeptos da cultura inquisitóra ­­­­­­­­– resistentes à mudança compatível com o sistema constitucional acusatório –, o juiz não se portará como uma “samambaia” na sala de audiência. O magistrado preside o ato, controlando a atuação das partes a fim de que a prova seja produzida de acordo com os limites legais e do caso penal. E não só isso, poderá fazer perguntas no intuito de complementar pontos não esclarecidos (LOPES JUNIOR, 2018).

O ponto nevrálgico é que o juiz poderá fazer perguntas para a testemunha, mas não como protagonista da inquirição. Para Lopes Junior (2018, p. 459), o mais difícil não é compreender a nova redação do artigo 212 do Código de Processo Penal, “mas abandonar o ranço inquisitório que ainda domina o senso comum dos atores judiciários”.

Nesse sentido, convém citar interessante julgado do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial n. 1.259.482 – RS) em que o processo foi anulado desde a audiência de instrução, pois, diante da ausência do Ministério Público no ato, o juiz o substituiu, formulando desde o início as perguntas, violando claramente a atividade complementar da sua inquirição.

No caso, o Ministério Público alegou que a não observância da metodologia prevista no artigo 212 do CPP gerava nulidade relativa, cabendo à parte demonstrar o prejuízo. Ademais, ressaltou o órgão acusador que as alterações trazidas pela Lei n. 11.690/08 não afastam a possibilidade de formulação de perguntas pelo magistrado às testemunhas, mesmo que previamente às partes.

Evidente que tal argumentação busca a manutenção do protagonismo do magistrado, característica típica do modelo inquisitório, o que contraria o propósito da legislação supracitada.

Indo um pouco além do julgamento em discussão, mas ainda a respeito do assunto abordado, verifica-se que há na doutrina até quem afirme que a mudança legislativa em nada alterou a sistemática anterior. Para Guilherme Nucci (2010, p. 474), pode o magistrado “produzir tantas provas quantas ele desejar, de ofício, sem que nenhuma das partes manifeste interesse”.

O autor ainda sustenta que, no cenário das testemunhas, “o juiz do feito pode arrolar quem bem quiser, sem prestar contas às partes” e que, mesmo após a reforma de 2008, “as partes não passam a ter o domínio da instrução ou da audiência; apenas reperguntam, isto é, dirigem indagações às testemunhas, quando não houver pergunta formulada pelo magistrado” (NUCCI, 2010, p. 474). Para aqueles que almejam um processo penal inquisitório e autoritário, esse parece ser o entendimento adequado.

No entanto, é nítido que a alteração do artigo 212 do CPP foi realizada com a finalidade de adequá-lo à Constituição da República e ao sistema acusatório por ela acolhido, afastando o protagonismo do magistrado (modelo presidencialista) na inquirição das testemunhas, traço inquisitório presente na antiga redação.

Retornando ao julgamento do STJ, destaque-se que, na ocasião, o Ministro Relator, Marco Aurélio Bellizze, entendeu ser a nulidade relativa. Porém, afirmou que, naquele caso, a inquirição pelo juiz não se deu em caráter complementar, mas sim principal. Portanto, não se deu a nulidade pelo descumprimento da ordem de inquirição do juiz, mas por conta da violação de seu caráter complementar, tendo em vista a ausência do representante do Ministério Público.

Segundo o relator, não se verificou “a indispensável separação entre o papel incumbido ao órgão acusador e ao julgador, principal característica do sistema penal acusatório”.

O processo havia sido anulado anteriormente pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Apelação Criminal n. 70038050605), oportunidade em que o relator, Desembargador Nereu Giacomolli, acertadamente ressaltou a nova sistemática adotada pela legislação processual penal brasileira por meio da lei 11.690/08:
"Primeiramente a parte demonstra o que pretende provar com a inquirição de determinado sujeito; em seguida, garante-se o contraditório e, por último, o magistrado realiza a complementação, na esteira da situação processual formada com as perguntas, com o objetivo de esclarecer situações que, a seu juízo, não restaram claras. Caminha-se na esteira de um sistema democrático, ético e limpo de processo penal (fair play). Evitam-se os intentos inquisitoriais, o assumir o lugar da parte, a parcialização do sujeito encarregado do julgamento.
O papel complementar do juiz não deve ser visto como uma abertura para que este mantenha uma postura de gestão ativa da prova. Deve o juiz, tão somente, complementar as eventuais dificuldades de cognição trazidas pelas partes, perquirindo o que ficou controverso, esclarecendo detalhes, porém sem poder inovar, a fim de se evitar, novamente, uma leitura inquisitória (ROSA, 2017).

A possível alegação de que o papel complementar do juiz poderia permitir uma postura de gestão ativa da prova no sentido de justificar a produção em favor da defesa, em que pese arguida por alguns, não se sustenta, uma vez que o esclarecimento só se dá no caso de dúvida e, logicamente, a dúvida absolve, consoante o princípio in dubio pro reo.

Rangel (2018, p. 19) aduz que, exercendo uma função completiva, o juiz fortaleceria seu papel de garantidor, impedindo que a testemunha fosse coagida por uma das partes, ou, quiçá, respondesse uma pergunta subjetiva ou impertinente.

Ocorre que o juiz brasileiro, ou a maioria deles, lamentavelmente, ainda não se adaptou (ou se conscientizou) ao novo modelo acusatório-constitucional, e permanece (consciente ou inconscientemente) trabalhando a partir da mentalidade inquisitória, deixando de ocupar o seu lugar constitucionalmente demarcado para exercer um papel que não é seu. Nota-se, assim, que, além de legislativa, a mudança deve ser cultural, de modo a se superar a indesejada tradição autoritária e se abrir caminho a um novo paradigma processual penal.

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REFERÊNCIAS

 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo Juiz no Processo Penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coord.). Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

______. Os sistemas processuais agonizam? In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA Marco Aurélio Nunes da (Org.). Mentalidade Inquisitória e processo penal no Brasil: diálogos sobre processo penal entre Brasil e Itália. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 47-64.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução por Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2018.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: RT, 2010.

POLI, Camilin Marcie de. Sistemas Processuais Penais. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. São Paulo: Atlas, 2018.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

Jordan Vilas Boas Reis
Fonte: Canal Ciências Criminais

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