Era uma vez um estudante de Direito que queria ser melhor em 2019

goo.gl/7A5iij | Era uma vez alguém que estudou o Processo Penal in the books (nos livros) e se deu conta de que a realidade prática não funciona como os livros e manuais contam. Ele descobriu isso vendo a primeira audiência ou assistindo a TV Justiça. Os julgadores inventam argumentos os mais inesperados para justificar as decisões.

A incerteza preside o mecanismo de decisão porque são muitas camadas decisórias e há um enigma pairando sobre o campo do Direito. Aí ele pensou que estivesse estudando pelos livros errados e tentou mudar de autores, também sem êxito. Seguindo sua saga em busca de conhecimento e tendo em si curiosidade, deu-se conta de que não existe um livro salvador de todas as múltiplas variáveis e critérios para compreender adequadamente o jogo processual. Seria preciso mudar as coordenadas de aprendizagem.

Até o dia em que pode sofisticar sua forma de abordagem. Primeiro o jogador decidiu modificar o modo que se engaja no Processo Penal. Para tanto começou a ler o Código de Processo Penal e achou que o domínio normativo seria o suficiente. Seu sonho infantil durou poucos processos até se dar conta de que algo que não dominava – ou não levava em consideração – e precisava ser descoberto: instaurou-se um enigma. Decidiu que desejava conhecer os segredos de como o jogo processual funcionava em dois planos: a) universal; e b) singular.

Estudar normas jurídicas não significa compreender como o jogo acontece, justamente porque há uma brecha cognitiva. Basta ver de Futebol, passando por Fortenite, chegando ao Processo Penal. Havia algo de oculto no modo como se comportavam os jogadores (atores do processo penal)[i]. Daí se deu conta de que a atribuição de sentido das normas era realizada por humanos e, assim, decidiu estudar o comportamento humano no ambiente do Processo Penal. Muitos continuam nos sonhos infantis e são presas fáceis nos jogos processuais de todos os dias. O desafio será demonstrar o quanto você pode deixar de ser ingênuo desvelando o que há de oculto, ainda que sempre sobre algo que lhe escapa, por definição.

A leitura pela Teoria dos Jogos (fica ligado porque caiu no último concurso para Defensoria Pública do Maranhão, questão 50: Equilíbrio de Nash – Fundação Carlos Chagas: FCC) procura estabelecer um esquema mental mínimo e formal de compreensão que deve ser, necessariamente, abastecido com informações do contexto. Em resumo: Não há decisão correta antecipada porque a decisão opera em camadas: a) normativa: aparato normativo invocado; b) cognitiva: cérebro/mente, memória, capacidade cognitiva e mapa mental; c) contextual: como o sentido varia conforme o tempo, espaço e ambiente em que a decisão é tomada.

Uma leitura menos ingênua. Um pato a menos

Todos querem ganhar no processo penal. Seja jogador de investigação (Delegado, Policial Militar, Defensor, Investigado, etc.) acusação (Ministério Público ou querelante), defesa (advogados ou Defensoria Pública) ou ainda o Julgador (Juiz ou Tribunal). Além disso, antes da instauração da ação penal (com a denúncia), a autoridade policial e os agentes da Lei jogam na atividade investigatória[ii].

Longe de ser brincadeira, a noção de jogo é utilizada por vasta bibliografia filosófica, econômica e do Direito, dentre outros campos. Você mesmo pode se recordar que usa corriqueiramente a expressão: o que está em jogo (devo o despertar ao parceiro L. A. Becker). Então, sem puritanismos acadêmicos abusivos, de gente que escreve para si mesmo ou para poucos, com baixa efetividade prática, procuro indicar “como” o processo penal pode funcionar. Isso porque são tantas variáveis que a composição de um cenário processual depende de um instrumento formal capaz de organizar o modo como processo penal se estrutura. Não adiante somente decorar ou saber de cor e salteado as regras procedimentais porque o processo penal é um instrumento de poder em que os melhores jogadores podem fazer a diferença.

Se você acha que processo penal é mero aplicar/acoplar de regras jurídicas aos fatos você é ingênuo e iludido. As regras devem ser sustentadas por jogadores que jogam limpo, dentro do fair play, embora sempre algum dos jogadores pode se arriscar em jogar sujo para ganhar. E isso acontece muitas vezes. A capacidade de compreensão poderá lhe dar condições de antecipar jogadas ilícitas/ilegítimas e criar/inventar táticas de enfrentamento. O jogador que age em desconformidade com as regras acaba tendo que se evadir/fugir para o resto da vida. Além do que, ganhar um jogo limpo tem um sabor diferente de ganhar fraudando. Mas não se pode fugir dos jogadores charlatães; eles são muitos. Quem acha que os charlatães não existem, nem jogam nas investigações e nos processos penais, acaba ocupando o lugar de pato (especialmente em tempos de Lawfare).

A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal

O Processo Penal é uma competição entre jogadores diversos, com recompensas diferentes e a ilusão primária é a de que se cada um perseguir seus interesses individuais, o somatório das ações será um melhor bem-estar (Adam Smith). Assim, os jogadores acabam procurando a melhor estratégia sem se dar conta de que a interação ocupa um fator primordial. Criam-se duelos, rivalidades, lutas incessantes pelo convencimento, sem que se dê conta de algo óbvio retratado por John Nash: o bem-estar coletivo será melhor quando se fizer o melhor para si e para o grupo. Em sendo o Processo Penal metaforizado pela Teoria dos Jogos, podemos perceber que a luta pela vitória deve se dar pela leitura adequada do contexto do jogo penal, em que o jogo depende das regras reconhecidas pelos jogadores, em especial os magistrados (onde se situa o poder de decisão), das possíveis recompensas e das táticas e estratégias utilizadas. O recurso formal proporcionado pela Teoria dos Jogos pode ser um ganho cognitivo poderoso na ampliação da performance e da leitura dos erros e acertos. Tudo isso levando-se em conta de que o Processo Penal opera com jogadores nem sempre racionais e que quanto mais você souber o modo como pensam – o mapa mental – poderá predizer comportamentos processuais e adequar as táticas e estratégias. Enfim, trata-se de interações táticas-estratégicas entre pessoas humanas situadas no tempo e no espaço, com caráter dinâmico, a saber, alteram-se a todo o tempo.

A Teoria dos Jogos servirá de metáfora do Processo Penal em que se deve inventariar as cartas probatórias (existentes e possíveis de serem produzidas), pensar estrategicamente e saber jogar, aliando aspectos cognitivos, argumentativos e técnicos. Pressupõe o conhecimento do aparato normativo e suas múltiplas possibilidades de sentido. Deve-se estudar não só os autores (doutrinadores) e/ou Tribunais que se gosta, mas principalmente os que não se gosta, porque pode ser justamente este que o julgador acolhe e ele que você precisa convencer. Já pensou em conversar sobre imputação objetiva com quem não sabe o que é? O diálogo é de surdos. Reside na possibilidade de se elaborar uma teoria da mente/cérebro[1] dos demais jogadores o desafio da interação, a saber, uma teoria e evidências de como pensam os demais que interagem conosco. Isto fica evidente quando conhecemos nossos familiares, amigos, filhos, os mais próximos, dado que com o volume e qualidade de informações antecedentes, podemos predizer o que farão ou como se comportarão com maior ou menor grau de acerto.

Logo, se levamos a sério as pessoas com quem interagimos, devemos também saber que Eu penso que Ele pensa que Eu penso que Ele pensa, até o infinito. Sem esse passo em direção à interação cognitiva o Processo Penal estudado e ensinado permanece no campo normativo, dos juristas pôneis que acreditam em fadas e unicórnios (denomino isso de Processo Penal Baunilha/Pônei). A Teoria dos Jogos possibilita estabelecer comportamentos dominantes/dominados em face das possíveis ações dos demais jogadores que interagimos. Se conseguirmos antecipar quais serão as táticas e a estratégia do nosso antagonista ou mesmo do julgador, temos o ganho qualitativo de poder operar em conformidade com nossa estratégia. Minimizamos as perdas, mitigamos os riscos, alinhando um curso de ação tendencialmente vencedor.

Neste trajeto devemos saber, ainda, que podemos ser vítimas de nossas próprias heurísticas e vieses[2], dentre eles o do excesso de confiança. Por isso, será fundamental aceitar a complexidade e a incerteza das imensas cadeias e nós de decisão que podem, por um detalhe, alterar todo o curso estratégico. A interação proposta será entre os jogadores, munidos de aspectos psicológicos, biológicos e que se alteram em cada contexto de decisão. Arriscar novas coordenadas pode fazer de você um jurista menos trouxa em 2019, ou não, diria Caetano.

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[1] Embora não se confundam as noções de cérebro e mente, dadas as particularidades, no contexto do Direito arrisquei nesta primeira articulação facilitar a leitura pelo uso como se sinônimos fossem. Depois, a partir de distinções relevantes da neurociência, poderá se indicar peculiariedades. A aproximação portanto é tática. Para saber mais sobre a neurociência e direito. MORAIS DA ROSA, Alexandre; KALHED JR, Salah H.. In dubio pro Hell: profanando o sistema penal. 3ª edição. Florianópolis: EMais, 2018, p. 85-98. Ainda: CERQUEIRA, Marina. Neurociências e culpabilidade. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. BUSATO, Paulo César. Neurociência e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2016.

[2] WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: Empório Modara – EMais, 2018 (no prelo nova edição ampliada, 2019). Conferir: NUNES, Dierle; LUD, Natanael; PEDRON, Flávio Quinaud. Desconfiando da Imparcialidade dos Sujeitos Processuais: um estudo sobre os vieses cognitivos, a mitigação de seus efeitos e o debiasing. Salvador: JusPodivm, 2018; COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Salvador: JusPodivm, 2018. Em breve também a dissertação da Bianca Bez Goulart e o livro meu com Gisele Tobler. A bibliografia internacional é, ademais, abundante sobre o tema.

[i] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: EMais, 2019 (no prelo a 5ª edição).

[ii] BERMUDEZ, André Luiz. A investigação criminal orientada pela Teoria dos Jogos. Florianópolis: EMais, 2018.

Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).
Fonte: Conjur

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