Desmond Tutu, arcebispo da África do Sul e vencedor do Nobel da Paz, morre aos 90 anos

Via @jornaloglobo | Morreu neste domingo, aos 90 anos, o arcebispo Desmond Tutu, da Igreja Anglicana na África do Sul, um dos mais importantes ativistas da luta contra  o apartheid, que lhe rendeu  o Prêmio  Nobel da Paz em 1984.

Diagnosticado com câncer de próstata no final da década de 1990, o religioso foi hospitalizado várias vezes nos últimos anos para tratar de infecções associadas à doença.

“O falecimento do arcebispo emérito Desmond Tutu é outro capítulo de luto na despedida da nossa nação a uma geração de notáveis sul-africanos que nos deixou como legado uma África do Sul libertada”, disse o presidente Cyril Ramaphosa em comunicado.

Ramaphosa descreveu Tutu como "um homem de uma inteligência extraordinária, íntegro e invencível contra as forças do apartheid", mas que foi "também terno e vulnerável na sua compaixão por aqueles que sofreram a opressão, a injustiça e a violência".

A Fundação Nelson Mandela ressaltou em comunicado que as contribuições do ativista "para a luta contra a injustiça, local e globalmente, estão no mesmo nível da profundidade de seu pensamento sobre a construção de futuros libertadores para as sociedades humanas. Ele era um ser humano extraordinário".

Sacerdote ativista

Nascido na pequena cidade de Klerksdorp, a oeste de Johannesburgo, em outubro de 1931, Desmond Mpilo Tutu era filho de uma empregada doméstica e um professor. Seguindo os passos do pai,  formou-se  profissional de educação, mas desistiu da carreira após três anos por não concordar com a qualidade de ensino inferior oferecida para crianças negras pelo regime racista sul-africano.

Tutu viveu por um período no Reino Unido, onde, segundo ele mesmo dizia, pedia informações desnecessariamente apenas para ser chamado de "Senhor" por policiais brancos. Ele se casou em 1955 com Nomalizo Leah Shenxane, com quem teve quatro filhos.

Ordenado aos 30 anos  em 1961, após estudar na Faculdade de Teologia de São Pedro,  em Johannesburgo. Anos mais tarde, voltou à Inglaterra para obter um novo diploma e fazer mestrado no King's College. De volta à África do Sul, sua paróquia de St. George, na Cidade do Cabo,  tornou-se um centro da luta contra o apartheid e ele, tornando-se cada vez mais conhecido,  passou a ser figura constante à frente de passeatas e campanhas, percorrendo o mundo para defender maior pressão internacional sobre o regime racista, sobretudo com sanções. Sua luta baseada na resistência não violenta,  que lhe valeu o apelido de "bússola moral da nação",  provocou a ira do governo sul-africano de minoria branca.

Tutu foi nomeado arcebispo em 1986, tornando-se o primeiro negro no posto na Cidade do Cabo. Sua posição como líder religioso impediu que fosse preso, ao contrário de boa parte dos líderes da luta contra o apartheid. Seu sorriso largo, sua afabilidade e seus discursos eloquentes o tornaram uma celebridade mundial, mas ele nunca perdeu a humildade. Frequentemente, descia do púlpito para abraçar e interagir com os paroquianos, por vezes dançando entre eles.

Após a libertação de Nelson Mandela da prisão, onde passou 27 anos, foi o religioso quem conduziu o ativista a uma varanda na prefeitura da Cidade do Cabo, onde ele proferiu seu primeiro discurso público. O arcebispo comparou a votação nas primeiras eleições democráticas sul-africanas, em 1994, ao sentimento de "apaixonar-se".

Com a eleição de Mandela para a Presidência, Tutu — que criou o termo "Nação Arco-Íris" para a África do Sul pós-apartheid — presidiu a Comissão da Verdade e da Reconciliação (CVR), criada com a esperança de virar a página do ódio racial. "Você fica sobrepujado pela extensão do mal", disse ele à epoca, acrescentando que era preciso abrir as feridas para curá-las. Sua credibilidade foi crucial para os esforçoas da comissão de levar ex-membros das forças de segurança e ex-guerrilheiros a cooperarem com o inquérito em troca de anistia. 

A luta de Tutu por uma África do Sul mais igualitária e humana não parou com o fim do apartheid. Em 2004, ele acusou o presidente Thabo Mbeki  — o sucessor Mandela  —de levar adiante políticas que enriqueciam uma pequena elite enquanto "muitos, muitos demais de nossa gente vivem em uma pobreza massacrante, degradante e  desumanizadora".

Reconciliado com Mbeki, que o visitou no hospital em 2015, o arcebispo permaneceu insatisfeito com o estado de coisas em seu país sob Jacob Zuma, o próximo presidente, que anos mais tarde seria acusado de corrupção e renunciaria,  terminando na prisão. 

"Acho que estamos em um estado ruim na África do Sul, especialmente quando se compara com os anos de Mandela", disse ele à The New York Times Magazine em 2010. "Muitas das coisas que sonhávamos possíveis parecem estar cada vez mais fora de alcance. Temos a sociedade mais desigual do mundo."   

Com o aprofundamento das denúncias de corrupção e má gestão em 2011, Tutu subiu o tom das críticas a Zuma. "Este governo, nosso governo, é pior do que o do apartheid", sentenciou o arcebispo, "porque pelo menos era isso que se esperava deles".

Tutu retirou-se da vida pública em outubro de 2010, mas nunca deixou de manifestar-se pelas causas em que acreditava. Ainda em atividade, acusou o Ocidente de manter-se em silêncio e de tornar-se cúmplice no sofrimento dos palestinos. Já aposentado, em 2013, declarou seu apoio aos direitos LGBT+, afirmando que jamais iria "adorar um Deus que fosse homofóbico".

Em 2021, próximo a seu aniversário de 90 anos e em plena pamdeia de Covid-19, ele entrou no debate sobre a vacinação.

—  Não há nada a temer. Não deixem a Covid-19 continuar a devastar nosso país, ou nosso mundo. Vacinem-se.

Homenagens

Sua morte gerou manifestações de pesar também fora da África do Sul. O ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, o descreveu como "um mentor, um amigo e uma bússola moral para mim e para tantos outros".

"De espírito universal, o arcebispo Tutu estava enraizado na luta pela libertação e pela justiça em seu próprio país, mas também preocupado com a injustiça em todos os lugares. Ele nunca perdeu seu senso de humor travesso e sua disposição de encontrar humanidade em seus adversários. Michelle e eu sentiremos muita falta dele", disse Obama.

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, expressou "profunda tristeza" e elogiou a "liderança intelectual" do lider religioso .

"Foi uma figura-chave na luta contra o apartheid e na luta para criar uma nova África do Sul. E será lembrado por sua liderança espiritual e bom humor irreprimível", escreveu Boris no Twitter.

As homenagens também vieram do grupo de personalidades conhecido como "The Elders", uma organização criada em 2007 por Mandela e da qual Tutu foi o primeiro presidente.

Em um comunicado, a instituição criada para reunir figuras públicas proeminentes — que tem entre seus membros o ex-secretário-geral da ONU Ban Ki-moon e o ex-presidente americano Jimmy Carter, entre outros —  e discutir problemas mundiais elogiou Tutu como uma "inspiração".

"The Elders perderam um amigo querido, com um sorriso contagioso e senso de humor travesso que encantaram a todos. O mundo perdeu uma inspiração,  mas suas realizações nunca serão esquecidas".

Desmond Tutu faleceu tranquilamente às 7h (2h de Brasília), de acordo com várias pessoas próximas à família entrevistadas pela AFP.

Fonte: oglobo.globo.com

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