Operadores do Direito, no entanto, nunca podem ficar 100% relaxados. Afinal, não há trégua nas desavenças sociais. Pelo contrário: as festas, muitas vezes regadas a álcool e drogas, potencializam os desentendimentos. Por isso, a revista eletrônica Consultor Jurídico reuniu “causos” de Carnaval vividos por advogados, magistrados e integrantes do Ministério Público.
Cura para o porre
O criminalista Luís Guilherme Vieira diz que os advogados da sua área têm de estar disponíveis 24 horas por dia. “A vida do criminalista é atípica. Não tem hora para iniciar, tampouco para findar. Os fatos batem à sua porta a qualquer dia e horário, adentram sem pedir licença, e ele tem de estar preparado para atendê-los.”
Ele conta que, em seus 41 anos de atividade profissional, já atendeu a diversos casos durante o Carnaval — muitas vezes, tendo de deixar de lado os desfiles das escolas de samba na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro.
Certa vez, Vieira estava indo para o Aeroporto do Galeão, para viajar para o exterior com sua família. No caminho, apareceu uma emergência. Os familiares embarcaram, e ele foi atender ao cliente. Ao chegar à delegacia, a “emergência” era um cliente embriagado que havia sido preso por se envolver em um empurra-empurra, o que configura a contravenção penal de rixa.
“Depois de muito conversar com o delegado, chegou-se à conclusão de que o melhor para todos era deixar o cliente em uma cadeira para curar o seu porre, para depois tomar o rumo de casa. A noite passou e, ao amanhecer, ele acordou sem memória e sem saber onde se encontrava. Eu expliquei a ele o que tinha acontecido. Envergonhado, ele não tinha condições de se dirigir para a sua casa. Então dei-lhe uma carona e, depois, tomei rumo para a minha. A viagem não pude fazer — não havia passagens aéreas disponíveis. ‘Sambei’ em casa”, conta Vieira.
Em outra oportunidade, o advogado estava no Sambódromo, esperando o Salgueiro — sua escola de coração — entrar, quando recebeu um telefonema de um cliente informando-o de que um familiar tinha acabado de ser preso.
“Não assisti ao Quinho do Salgueiro e o seu grito de guerra”, lamenta Vieira. Ele foi para casa, tomou um banho, colocou terno e gravata — “Lição dos mais antigos: não se vai à polícia ou ao Judiciário sem estar trajado em termos” — e rumou para a delegacia.
O rapaz, de 18 anos, tinha sido preso em flagrante por portar uma guimba de maconha, algo que era mais delicado naquele tempo do que hoje. Nem ele nem seus parentes tinham dinheiro para pagar a fiança e permitir que ele respondesse ao processo em liberdade.
“Não teve jeito: paguei a fiança (desta feita não precisei levar o cliente em casa, seus parentes estavam motorizados) e, assim, mais uma vez, o ‘samba’ foi na minha casa. Um detalhe: nunca pagaram os honorários pelo atendimento, muito menos ressarciram o dinheiro da fiança. Acontece com frequência.”
Lança-perfume
Quando era promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, o jurista Lenio Streck teve de atender a uma ocorrência por apreensão de lança-perfume durante o Carnaval. Embora bastante usada nas festividades, a droga era — e ainda é — proibida.
“Ser promotor de Justiça na fronteira com a Argentina, no tempo em que não havia nem se pegava televisão na cidade, era uma tarefa difícil. Principalmente se você morava em um condomínio em que tinha de subir oito lances de escada. E o bicheiro da cidade morava em um dos blocos”, recorda Lenio.
A apreensão do carregamento de lança-perfume interrompeu o Carnaval por algumas horas. “O juiz não estava na cidade, o delegado tinha ido pescar. Não existia celular, por óbvio. Nem computador. Tudo era escrito em máquina de escrever. Momentos jus momescos.”
O homem que estava com os entorpecentes foi preso, mas por pouco tempo. Era preciso fazer um laudo técnico para atestar que a substância era lança-perfume, mas demorava meses para a perícia ficar pronta. Então o juiz soltou o acusado, com a concordância de Lenio, com base nas garantias processuais.
“É preciso entender como era o funcionamento da Justiça sem tecnologia nenhuma. Para fazer um telefonema, era preciso esperar minutos por uma linha. Não havia estrutura. O juiz me emprestava um oficial de Justiça para fazer as intimações dos casos da promotoria. Coisa boa mesmo era o futebol das quartas-feiras e depois o churrasco no galpão campeiro que tinha atrás do fórum. E um gaiteiro que tocava chamamé, ritmo dominante na região da pampa e Corrientes. Churrasco de ovelha maravilhoso. Bons tempos.”
Violência policial
A violência policial está tão enraizada na cultura brasileira quanto o Carnaval. Atualmente procurador da República, Vladimir Aras era promotor de Justiça da Bahia quando foi escalado para exercer o controle externo da polícia durante o plantão carnavalesco em Salvador.
“Eu era promotor havia poucos anos, e me puseram no plantão no centro da folia momesca, no Farol da Barra. Compareci sem apoio algum. Pelo MP, só eu e Deus dentro da delegacia central que se instalava ali, acho que em 1995 ou 1996”, conta Aras.
O então promotor ficou acompanhando as ocorrências, atendendo a um e outro cidadão. Em um dos dias, por volta das cinco da tarde, chegou uma guarnição da PM conduzindo um jovem negro, muito magro. Algemado, ele foi apresentado como autor de furto. Ao seu lado, uma mulher negra, muito esquálida, mas visivelmente grávida, implorava para que o libertassem. A angústia foi silenciada pela brutalidade.
“Enquanto a Polícia Civil tramitava a papelada do suposto flagrante, a moça, que parecia ser a companheira do preso, começou a gritar desesperadamente, pedindo que o soltassem. De onde estava, eu via tudo. Até ali, o roteiro era o usual em situações assim. De repente, o sargento ou tenente que comandava o destacamento pegou o cassetete e golpeou a barriga da mulher que gritava. Ela se dobrou de dor”, afirma o ex-promotor.
Aras dirigiu-se ao delegado plantonista e pediu que ele autuasse o policial agressor pelo abuso de autoridade que ele e outros presentes no local tinham acabado de testemunhar. O delegado, então, respondeu: “Doutor, é melhor o senhor sair daqui. Delegacia não é ambiente para promotor”. E o escoltou até a porta do recinto. “Eu, que não sou doido, obedeci”, conta Aras.
Ele comunicou o incidente ao procurador-geral de Justiça da Bahia e à Corregedoria do Ministério Público estadual. Porém, foi em vão. “A impunidade no Brasil é uma tradição entranhada em todos os cantos”.
Conflito conjugal
O Carnaval, sabe-se muito bem, é a festa dos prazeres da carne, da lascívia. E é claro que conflitos conjugais se multiplicam nesse período. Quando foi juiz em uma cidade do interior do Rio de Janeiro, João Batista Damasceno, hoje desembargador do Tribunal de Justiça fluminense, teve de arbitrar uma separação causada pela folia.
Um homem, que trabalhava embarcado, voltou no sábado de Carnaval e encontrou os três filhos pequenos trancados em casa. Foi a solução que sua mulher encontrou para ir a um baile. Os vizinhos contaram onde ela estava, e o marido já chegou ao salão fazendo um barraco. A mulher foi se refugiar na casa dos pais.
Passado o Carnaval, a mulher entrou com um pedido de separação judicial e de guarda dos filhos, que tinham ficado com o pai. Ela argumentou que não conseguia mais viver com o marido. Damasceno marcou audiência. Na sessão, o juiz perguntou se era possível converter a ação litigiosa em separação consensual. O homem respondeu que não era possível porque “o que Deus junta, o homem não separa”.
“Mas não teve jeito. A mulher queria mesmo a separação. Eu disse para ele que, na Justiça, o casamento não é religioso, que, perante o Estado, o vínculo é dissolvível. Se Deus não separa um casamento, um casal que se uniu em um casamento religioso, a Justiça separa o que foi juntado em um casamento civil. E assim foi feito”, narra Damasceno.
Tempos depois, o magistrado estava com febre e foi a uma farmácia comprar remédios. Lá, ele percebeu que um homem o fitava. Depois de alguns minutos, aproximou-se e perguntou se ele era o “doutor Damasceno”. O juiz disse que sim, receando que fosse alguém que ele havia mandado prender. Mas não: era o sujeito do Carnaval, querendo agradecê-lo pela separação e contar como sua vida tinha melhorado depois daquilo.
“Lava jato”
A finada “lava jato” era caracterizada pelas prisões arbitrárias e intermináveis. Assim, se havia uma chance de um preso ser libertado, os advogados não podiam desperdiçá-la, nem que isso implicasse trabalhar no Carnaval.
O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini lembra que passou parte de um Carnaval acompanhando longos depoimentos de um cliente na Polícia Federal em Curitiba. Isso era necessário para o acusado conseguir logo a liberdade provisória.
“Enquanto acompanhava o cliente, recebia pelo celular relatos de amigos e familiares sobre o feriado, o sol e a diversão. Não foi o melhor Carnaval da minha vida”, lamenta Bottini.
Audiências de custódia
A juíza aposentada Cristiana Cordeiro afirma que a criação das audiências de custódia, em 2015, foi um grande diferencial para o Carnaval.
“Aqui no Rio de Janeiro, elas acontecem diariamente, inclusive nos finais de semana e feriados. Antes disso, tudo era encaminhado aos plantões (papelada, sem ver presencialmente o preso), e muita gente passava alguns dias presa por casos pouco graves. Acho que os mais emergenciais mesmo são os casos de vida ou morte e de liberdade.”
Por Sérgio Rodas
Fonte: ConJur