Com mais de uma dezena de planos de morte contra ele, Gakiya anda diariamente acompanhado por um séquito de seguranças, tem curso de tiro e carro blindado. A três anos de se aposentar, afirma que não vê outro caminho para ele que não ir embora do Brasil. Por aqui, a legislação do país não lhe assegura, por exemplo, a manutenção de sua segurança depois de deixar o cargo.
— Minha situação é muito frágil. Agora, para eu sair do Brasil, preciso de duas coisas: conseguir asilo político em algum país e um meio de subsistência. Não tenho como dividir minha aposentadoria por seis [a taxa de câmbio], para viver dignamente fora do Brasil. Tudo isso me faz ter um futuro muito incerto — lamentou.
Gakiya experimentou a escolta policial ainda em 2005, depois de os chefes do PCC o decretarem à morte pela primeira vez. A situação piorou em 2018, quando foi alvo de nova ordem de assassinato. Naquele ano, a polícia apreendeu duas cartas cifradas na saída da Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, onde estavam detidos os chefes da facção. Atribuídas à cúpula do PCC, as mensagens sugeriam que os bandidos já haviam levantado a ficha de Gakiya, a quem se referiam como o “frango japonês”.
A ameaça era uma resposta ao pedido de transferência da cúpula do PCC para o sistema federal. Seria a primeira vez que Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, apontado como autoridade máxima da facção, ficaria não só distante de seu estado de origem e berço da organização criminosa, mas também de sua família. Na avaliação de Gakiya, seria a única forma de efetivamente isolar os presos mais perigosos. Nas cadeias de São Paulo, mesmo nos presídios rigorosos, eles faziam contato rápido via advogados e parentes.
— A gente tentou, desde 2006, isolar esses presos sem sucesso. O estado de São Paulo tinha receio de que houvesse novos ataques, e que isso pudesse complicar a situação política de governadores e secretários — ponderou Gakiya.
A situação mudou com a notícia do terceiro plano de resgate de Marcola. Segundo ele, o plano envolveria a participação de 80 mercenários, ex-militares africanos e ladrões de Novo Cangaço, a modalidade conhecida por tomar cidades com armamento pesado e assaltar bancos.
Para impedir o resgate, a pacata Presidente Venceslau foi tomada por mais de 200 policiais de batalhões especializados. Um caminhão do Batalhão de Choque — o chamado Guardião, versão paulista do carioca Caveirão, trazido de Israel e que suporta tiros de fuzil — se posicionou na entrada. Por determinação judicial, o aeroporto foi fechado. Relatos fantasiosos de explosões em agências bancárias, postos de combustível e na Santa Casa deixaram a população em pânico.
Num primeiro momento, o caos generalizado foi suficiente para Gakiya convencer alguns secretários de Estado sobre a necessidade da remoção da cúpula para o sistema federal. Mas era ano eleitoral, e o argumento da possibilidade de uma retaliação do crime organizado, aos moldes dos ataques de 2006, pesou. O governador em exercício e candidato à reeleição na época, Márcio França (PSB), hoje ministro do Empreendedorismo, não só mudou de ideia como tentou demover o promotor, segundo o próprio.
— Fiquei num dilema, a cidade cercada pela polícia… No final de novembro de 2018, fiz o pedido e, de alguma maneira, isso vazou. Aí minha vida se tornou um inferno — lamentou. — Quando assinei este pedido sozinho, sabia exatamente que estava colocando a minha vida em risco para o resto da minha existência. Venho sendo alvo de planos para me matar desde então.
A expressão "resto da existência", nesse caso, não é mera figura de linguagem. Para reforçar o quão delicada é sua situação, Gakiya recorda do caso de um diretor da Casa de Custódia de Taubaté morto pela facção mesmo anos depois da aposentadoria. Apesar do ônus pessoal, ele diz não se arrepender da decisão.
— Faria tudo de novo. Primeiro, o que a gente pretendia? A quebra da cadeia de comando, e isso a gente conseguiu, tanto que eles tiveram de passar a liderança para a rua. Segundo ponto, em decorrência do isolamento, haveria disputa interna pelo poder, isso era esperado e natural. Aconteceu com outras máfias — enumerou.
Foto do algoz
Gakiya entrou para o Ministério Público em 20 de dezembro de 1991, um dia antes de completar 25 anos, um “presente de aniversário”. No começo da carreira, a iminência da morte o apavorava tanto que ele passou a carregar em seu carro a fotografia de um de seus algozes, para tentar reconhecê-lo na rua.
Durante 20 anos à frente das comarcas de Presidente Bernardes e Presidente Venceslau, assistiu ao rápido controle do PCC nas cadeias paulistas. Foi convidado para assumir o Gaeco em 2008, onde se tornou peça chave do sistema penitenciário. Já chegou a sugerir à Secretaria de Administração Penitenciária para transferir 40 presos da noite para o dia para o sistema “não virar”, gíria para rebeliões. O reconhecimento o levou, em janeiro de 2017, a uma reunião com o presidente Michel Temer no auge da crise penitenciária.
Ao longo da carreira, Gakiya também acumulou decepções. Teve um difícil revés ao perder um amigo para o crime, o juiz José Antonio Machado Dias, assassinado pelo PCC devido a seu perfil linha-dura. Seu maior desgosto profissional poderia ter sido seu maior êxito. Durante dois anos e meio, Gakiya e outros 21 promotores conduziram o que ele define como a maior investigação da história do MP paulista. Em setembro de 2013, denunciaram à Justiça 175 membros da facção por formação de quadrilha. A Justiça, sob o argumento de que já havia passado tempo demais, indeferiu os pedidos. A peça de 876 páginas é tratada com a deferência de um livro de autoria própria.
Até tempos atrás, Gakiya só atuava nos bastidores. Quando o tom das ameaças subiu, percebeu que a publicidade poderia protegê-lo. Consultou primeiro a família, depois o procurador-geral. Em 2016, concedeu sua primeira entrevista.
Uma de suas investigações rendeu a Marcola uma pena de mais de 30 anos de prisão. Não foi suficiente para conter a facção, hoje a maior do Brasil, com faturamento de US$ 1 bilhão e membros espalhados por 24 países. Com a parceria de mafiosos estrangeiros, o PCC já consegue enviar drogas para os cinco continentes. O próprio Gakiya faz um mea-culpa sobre a incapacidade do estado — MP incluído — de acabar com o comando de Marcola, que começou em 2002.
Recentemente, o promotor fez uma jogada com o intuito de, finalmente, tentar enfraquecer seu algoz. Gakiya alertou o Ministério Público Federal sobre uma fala infeliz de Marcola gravada durante um atendimento médico em julho de 2022. Na ocasião, o líder do PCC disse a um funcionário da Penitenciária Federal de Porto Velho que seu comparsa Roberto Soriano, o Tiriça, apontado pela polícia como um dos mais violentos integrantes da sintonia final do PCC, era um "psicopata". A gravação foi usada pelo MPF contra Soriano no processo em que ele era acusado da morte de uma psicóloga da Penitenciária Federal de Catanduvas (PR), em 2017. Soriano acabou condenado e o episódio deflagrou um racha sem precedentes na cúpula do PCC.
— O Marcola sabia bem o que estava falando, só não esperava que o Soriano teria ciência disso, pensou que ficaria interno. Eu inclusive sou um dos responsáveis [por divulgar essa informação]. Eu avisei o MPF que existia essa gravação em Porto Velho do Marcola fazendo referência ao Soriano ser psicopata. Não digo que ele foi condenado por causa da gravação, mas ela foi uma prova importante — afirmou Gakiya.
Por Aline Ribeiro — São Paulo
Fonte: oglobo.globo.com