O que aconteceu
• Maria Inês classificou como "fascista" a atitude do prefeito Abílio Brunini (PL), que é bolsonarista. "Ele não me ouviu, não quis dialogar. Disse que, se eu continuasse usando pronomes neutros, teria de sair. Eu não ia acatar isso. Então eu me retirei", contou ao UOL. "Eu sabia com quem estava lidando, mas não iria abrir mão de ocupar aquele espaço: não é dele, é nosso", afirmou.
• O episódio ocorreu no momento em que Maria Inês iniciava a sua fala na conferência, citando a diversidade brasileira e usando pronomes neutros. Brunini interveio, afirmando que "na prefeitura não se usa gênero neutro" e ameaçando expulsá-la. Ela então diz que sairia por vontade própria. O momento foi registrado em vídeo, que viralizou nas redes sociais e ampliou o debate nas horas seguintes.
• A professora conta que deixou a conferência para não se calar diante do prefeito. "Eu me retirei porque não iria me calar ou me submeter àquela imposição autoritária. A conferência é um espaço deliberativo, com participação social e controle popular. Ele não tinha o direito de transformar aquilo em ato de poder pessoal".
Discurso interrompido
• Maria Inês começou sua fala saudando a ancestralidade e usando linguagem neutra, para exemplificar a política inclusiva do SUS. "Saúdo nossa ancestralidade. Saúdo companheiras, companheiros, companheires, e as vozes invisibilizadas que limpam, cozinham, sofrem e riem, nas periferias, aldeias e palafitas", disse.
• Enquanto ressaltava a diversidade do país ao relacionar saúde e identidade, ela foi interrompida. "Somos Negras, Negros, Negres, Indígenas, Ciganas, Brancas, Branques, LGBTQIA+ e pessoas com deficiência — a plenitude de existências que compõem este país", falou a professora, antes de ser silenciada.
• O discurso avançaria na discussão de desigualdades históricas e defesa do SUS. "Somos mais de 300 povos indígenas, falam-se mais de 270 línguas. Consolidar o SUS exige enfrentar patriarcado, racismo e desigualdades estruturais".
• Para a professora, barrar linguagem neutra é negar direitos. "O SUS é universal, é de todas, todos e todes. Negar isso é negar direitos", afirmou. "Se ele [o prefeito] faz isso com uma convidada, como tratará pessoas LGBTQIA+ que buscam o SUS? Não se pode nem falar um pronome neutro?", questiona.
• Ela também citou desigualdades persistentes e criticou a precarização dos serviços. "Mulheres negras morrem mais que mulheres brancas de morte materna. Se o SUS é universal, por que isso acontece? Porque racismo, patriarcado e classe social ainda determinam quem vive e quem morre. Quando terceirizamos a gestão e precarizamos servidores, desmontamos um sistema que é fruto de luta popular".
"Aqui no nosso município, na nossa gestão, a gente não trabalha com pronome neutro, nem com doutrinação ideológica. Durante a minha gestão, não vou aceitar a manifestação de pronome neutro. Se a senhora não se sentir à vontade em fazer uma apresentação que discuta a saúde de Cuiabá sem doutrinação ideológica e sem manifestação de pronome neutro, eu vou suspender a apresentação." — Abílio Brunini (PL)
O que diz o prefeito
• Abílio Brunini disse que solicitou ajuste prévio à fala da professora. Segundo declarou a prefeitura, em nota, "antes mesmo do início da palestra, o prefeito solicitou que a apresentação fosse adaptada aos padrões da comunicação oficial do município".
• O prefeito justificou a intervenção como defesa institucional. "A conferência é um instrumento oficial, patrocinado pelo município, que trata do planejamento de políticas públicas que impactarão a vida da população. Por isso, é fundamental que esse ambiente seja conduzido com responsabilidade e isenção ideológica", afirmou.
• Ele declarou respeitar a diversidade, mas vedou manifestações ideológicas. "Todas as pessoas têm espaço garantido na gestão municipal, independentemente de raça, orientação sexual, religião ou posicionamento político. No entanto, manifestações ideológicas, de qualquer vertente, não devem interferir na condução técnica das políticas públicas nem na linguagem adotada nas ações oficiais do Executivo", disse.
• A postura do prefeito repercutiu imediatamente na Câmara Municipal. No dia seguinte ao episódio, o vereador e policial federal Rafael Ranalli (PL) protocolou um projeto de lei para proibir o uso da chamada linguagem neutra ou não binária em documentos oficiais da administração pública e nas instituições de ensino da rede municipal. A proposta cita termos como "todes", "amigues", "elu" e "delu" e busca vedar seu uso em materiais didáticos, práticas pedagógicas, comunicados institucionais, concursos e demais atos oficiais da Prefeitura.
Reações
• Maria Inês é doutora em saúde pública e referência em políticas de equidade no SUS. Professora da Universidade Federal de Mato Grosso, ela tem trajetória ligada à formulação de políticas nacionais, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, e atua em pesquisas sobre desigualdades sociais e acesso à saúde.
• Pela sua representatividade, a reação ao caso ganhou força dentro e fora da conferência. "A reação social mostrou que ele [o prefeito] não esperava tamanha repercussão. Foram muitas manifestações de apoio, inclusive de delegados que estavam na conferência", disse Maria Inês. Entidades como a Abrasme (Associação Brasileira de Saúde Mental) e o Geledés (Instituto da Mulher Negra) também se manifestaram. Elas divulgaram notas de repúdio e defenderam a liberdade acadêmica e a diversidade no SUS.
• Maria Inês compara a postura do prefeito com a função do SUS. Para ela, enquanto o município se preocupa com normas de linguagem em eventos institucionais, o sistema federal de saúde tem como diretriz a promoção da equidade e o enfrentamento das desigualdades. "O SUS é uma política nacional, construída para garantir acesso universal e corrigir iniquidades históricas. Não faz sentido um gestor local usar a pauta linguística para desviar do debate central, que é saúde com direitos para todas, todos e todes", disse.
Por Maurício Businari
Fonte: UOL