Adão, Adelson, José e Cristiano recolheram quatro minhocas e foram pescar no município da Paraobeba (MG). Mal sabiam eles que estavam cometendo um crime ambiental, com potencial para chegar às mais altas cortes de Justiça do país. O "roubo" das minhocas foi denunciado pelo Ministério Público do Estado. Mas o juiz de Direito do município entendeu que, por se tratar de crime contra a fauna, a competência era da Justiça Federal. E o caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda maior corte do país, abaixo apenas do Supremo Tribunal Federal (STF).
O "roubo" das minhocas não é um caso isolado. Em meio a tantos julgamentos sobre desvios de bilhões dos cofres públicos, como na Operação Lava-Jato, os tribunais superiores também deparam com casos curiosos e insignificantes. Roubo de galinha, alicate, manteiga, chinelo, bombons também já chegaram às últimas instâncias. Processos que poderiam ser resolvidos nos tribunais regionais se não houvesse brecha para tantos recursos.
No último mês, dois casos no mínimo inusitados entraram na pauta de julgamentos do STJ. Em Minas Gerais, a defesa alegou o princípio da insignificância pelo roubo de uma tesoura e um alicate dentro de um consultório odontológico. No entanto, o Ministério Público discordou do entendimento e recorreu. Mais um caso para os principais ministros do Judiciário, que aguarda análise na Corte. Outro caso, este no Rio Grande do Sul, trata de uma denúncia contra um homem que pulou o muro da propriedade de uma mulher, arrombou a porta da casa e roubou vinte reais. Lá foi o pulador de muro parar no STJ. Para que os ministros optassem, então, pelo mesmo princípio da insignificância. Mesmo caminho usado no "roubo" das minhocas.
O STJ, corte responsável pela solução definitiva dos casos civis e crimes que não envolvam matéria constitucional nem a Justiça especializada, já proferiu vários casos julgados com o princípio da insignificância. Desde 1989, já foram 1.999 processos do tipo que passaram por lá. Atualmente, 22 estão em tramitação. Em 2013, o tribunal teve que julgar o roubo de um pacote de cuecas, subtraído da rede de lojas “Casas Pernambucanas”, no valor de R$ 25. Casos de todos os tipos e de todos os estados chegam ao tribunal. Um roubo de uma panela, uma jaqueta, uma forma de alumínio e um martelo, avaliados no total de R$ 60,00, também passou pelo tribunal.
Na última instância
No Supremo Tribunal Federal (STF), última instância do Poder Judiciário, casos emblemáticos também chegam até os ministros. No ano passado, a Suprema Corte julgou improcedente o pedido de condenação em uma ação penal em que o réu era acusado pelo roubo de um galo e uma galinha, avaliados em R$ 40,00. A ordem foi concedida pela Primeira Turma do tribunal ao analisar o pedido de habeas corpus feito pela Defensoria Pública da União (DPU). O caso foi parar no STF após o Tribunal de Justiça mineiro e o STJ negarem liberdade ao acusado.O ministro relator do caso, Luiz Fux, que votou pelo arquivamento da ação penal, ao analisar o mérito ressaltou que “o caso específico preenche os requisitos da insignificância”.
Além desse caso das galinhas, apesar dos valores ínfimos, ações como o julgamento de um habeas corpus de um condenado pelo furto de uma sandália de borracha no valor de R$ 16, a “tentativa” de furto de 15 bombons no valor de R$ 30 e o roubo de dois sabonetes líquidos íntimos no valor de R$ 48 chegaram ao Supremo.
Enquanto isso, julgamentos como o da atualização monetária das contas de poupança nos planos Cruzado, Bresser, Collor 1 e Collor 2, processo que envolve montantes próximos a R$ 400 bilhões, envolvendo milhões de brasileiros, dorme há anos no Supremo.
Objeto de pouco valor, coisa sem importância. Assim é definido o termo “bagatela” no dicionário brasileiro. No linguajar do Direito, se baseia na influência que uma sentença pode ter em processos futuros. Dentro desse pensamento, o STJ analisou e concedeu habeas-corpus a uma empregada doméstica presa pelo furto de um pote de manteiga, avaliado em R$ 3,10. Para os ministros, ela foi considerada inofensiva do ponto de vista criminal.
Despacho inusitado
Os ministros do STJ e do STF talvez sentissem vontade de fazer como o juiz Rafael Gonçalves de Paula, da 3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas, em Tocantins, que mandou soltar Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, detidos sob a acusação de furtarem duas melancias. Em despacho pouco comum, o juiz citou vários fundamentos que contrariavam a decisão de manter os acusados presos, no entanto não apontou nenhuma delas para sua decisão em três linhas: “Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir. Simplesmente mandarei soltar os indiciados. Quem quiser que escolha o motivo”.Seguem trechos da decisão:
“Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados e dos políticos do mensalão deste governo, que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional)...Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém. Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário apesar da promessa deste presidente que muito fala, nada sabe e pouco faz.
Poderia brandir minha ira contra os neoliberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização europeia....
Poderia dizer que os americanos jogam bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra - e aí, cadê a Justiça nesse mundo?
Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade".
O que faria o juiz Rafael Gonçalves de Paula diante das minhocas e dos chinelos que assolam as paredes vetustas das Cortes Supremas?
Fonte: fatoonline.com.br