Direito de família, a Constituição e o Direito em movimento – Por Felipe Halfen Noll

goo.gl/5clut5 | Recentemente, entendimentos atinentes ao direito e ao próprio processo civil, em especial aos direitos de família, foram modificadas em virtude de julgamentos do STF. Por mais que sejam julgados de recursos de processos que versam sobre direitos individuais, como bem se sabe, o Supremo Tribunal Federal recebe casos que versam sobre questões de direitos, de forma que a matéria apreciada pelos ministros ditam o próprio entendimento do ordenamento, gerando súmulas que unificam a jurisprudência.

Primeiramente, no dia 21 de setembro do ano passado, o Plenário do referido tribunal negou provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 898060, no qual o pai biológico recorria contra acórdão que estabeleceu sua paternidade, o obrigando a arcar com as obrigações patrimoniais decorrentes do vínculo reconhecido. O Recurso encontrava fundamento na existência de um pai afetivo, devendo o pai biológico ser eximido da responsabilidade.

O relator do RE, ministro Luiz Fux, após tecer um rico apanhado das questões que influenciaram o direito de família no decorrer da história e tratar da obsoleta – e finalmente superada – conceituação de família com centralidade no instituto do casamento, propôs a fixação da tese de repercussão geral:  “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” .

É dar ao filho a possibilidade de fazer constar em registro o nome do pai biológico e do socioafetivo. Para o ministro relator, o reconhecimento, pelo ordenamento jurídico, de modelos familiares diversos daquele contemplado pela concepção tradicional, não autoriza ao julgador decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos, de forma que as obrigações patrimoniais decorrentes da filiação também são contempladas.

Ainda atinente ao direito de família, o STF concluiu julgamento, no dia 10 do presente mês, que discutia a equiparação entre cônjuge e companheiro para fins sucessórios. A referida decisão partiu do julgamento, pelos ministros, dos Recursos Extraordinários 646721 e 878694, trazendo à baila a própria questão da união homoafetiva no que concerne às questões sucessórias.

Pelos julgadores foi declarado inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, que traz em seu corpo regime diferenciado de sucessão ao companheiro, diferente do disposto aos cônjuges, conforme previsto no art. 1829 do Código Civil.

Quanto ao julgado, o tribunal fixou tese nos seguintes termos: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002”.

Segundo o relator do RE 878694, o ministro Luíz Roberto Barroso, mesmo que a equiparação dos institutos frente à sucessão já tivessem sido matéria de lei (Lei 8.971/1994 e a Lei 9.278/1996), o Código Civil de 2002 não contemplou a questão. Isso porque, segundo o ministro, o código foi fruto de um debate realizado nos anos 1970 e 1980, anterior a várias questões que se colocaram na sociedade posteriormente. “Portanto, o Código Civil é de 2002, mas ele chegou atrasado relativamente às questões de família”.

O direito em si está em constante movimento. Todos os aspectos da vida em sociedade influenciam na criação do direito, da mesma forma que o direito criado influencia diretamente na sociedade. Sob esse mesmo diapasão, é evidente que o direito – que emana da sociedade para a sociedade – acompanha os fatos, devendo cumprir com as demandas criadas pela sociedade à qual foi criado.

O Código Civil de 1916 conceituava a “família” como algo constituído unicamente pelo matrimônio. Era uma visão extremamente tradicionalista, no sentido que vedava a dissolução do casamento, estabelecia distinções entre os próprios membros da família (patriarcalismo) e discriminava as pessoas unidas sem casamento e os filhos havidos dessas relações. No mesmo sentido, os chamados vínculos extramatrimoniais e os filhos ilegítimos, eram premissas para excluir direitos, e não para constituí-los (DIAS, 2015).

Já no atinente à questão de filiação, há de se falar no entendimento, já consagrado, que se tinha difundido mesmo na doutrina, de que o fato de se reconhecer a paternidade socioafetiva, ensejaria que fossem rompidos, automaticamente, os vínculos com o pai biológico, que se tornaria, meramente, o genitor, não podendo ser compelido a prestar alimentos e não transmitindo herança para o filho que estabeleceu vínculo com outrem, bem como não podendo exercer o próprio poder familiar. (FARIAS; ROSENVALD. 2012).

O que se vislumbra, e que é comum às duas matérias, é que as mudanças – umas mais tardias que outras – atinentes às antigas concepções decorrem, em boa parte, do advento da Constituição Federal de 1988.  Uma constituição é superiormente hierárquica aos demais diplomas normativos de um sistema jurídico, isso é fato, e, como já teorizado por muitos doutrinadores, a norma vigente que não respeita os preceitos constitucionais é inválida.

Na tentativa de explicar o referido, fala-se em uma “Constitucionalização do direito civil” que, nas palavras de Maria Berenice Dias é o fenômeno em que “grande parte do direito civil foi parar na Constituição, que, por sua vez, enlaçou temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade”. Por tratar de questões próprias do direito civil e fixar princípios intolerantes a qualquer tipo de descriminação, seja no âmbito do direito de famílias ou qualquer outro, a Constituição Federal acabou por ditar o rumo do direito civil de maneira especialmente expressiva.

A carga principiológica da Constituição Democrática, sempre atrelada às garantias fundamentais, inevitavelmente faz a norma infraconstitucional romper com preceitos conservadores oriundos de outras realidades. As conceituações abertas e os princípios igualitários e protetivos nela constantes providenciam que os vícios das normas sejam sanados, cedo ou tarde.

Dessa forma, evidencia-se que a Constituição Federal, por ter sido redigida sob um viés progressista, democrático e garantista por excelência, cumpre com o papel de possibilitar a sujeição das normas infraconstitucionais – mesmo as anteriores à vigência da Carta Magna – às próprias demandas de determinado contexto social, uma vez que o direito não se perpetua e deve mudar de acordo com a realidade e as perspectivas da sociedade. Com a adequação das normas aos preceitos constitucionais, seja pela atividade legisladora ou pelo controle de constitucionalidade, nos aproximamos cada vez mais do ideal garantista.

Notas e Referências:

STF. Notícias STF. Paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico, decide STF. 2016. Disponívelem: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=325781 >. Acesso em: 19 de maio. 2017.

STF. Notícias STF. Julgamento afasta diferença entre cônjuge e companheiro para fim sucessório. 2016. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=342982 >

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias/ Maria Berenice DIas, 10ª ed. rev. at. e ampl – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil/ Famílias, 4ª ed. rev. at. E ampl. – Salvador: Editora JusPODIVM, 2012.

Por Felipe Halfen Noll
Fonte: emporiododireito

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