Realmente você está sendo enganado sobre o garantismo penal - Por Daniel Kessler

goo.gl/NXhi2u | Muito se falou nos últimos dias acerca de um manifesto firmado por Promotores o qual trazia o título ‘Você está sendo enganado’ e, dentre outras coisas, culpava o garantismo penal pela impunidade no país.

Diversas pessoas já comentaram o referido manifesto, outros tantos o ignoraram por entender que as conclusões ali feitas não seriam dignas de maiores debates ou que o número de pessoas que firmou o manifesto seria inexpressivo.

Entretanto, penso que devemos sim discutir alguns pontos, primeiro pela gravidade que o tema envolve, segundo pela importância das funções das pessoas que figuram como signatárias do documento e, terceiro, pelo eco que as afirmações lá trazidas fez na sociedade.

Termos como bandilótras, democidas, associados ao garantismo penal revelam o quão enganoso é o referido manifesto.

Por óbvio que não dispomos de espaço suficiente para uma ampla análise acerca da complexa e profunda teoria do garantismo penal.

O garantismo penal que tem como pai o italiano Luigi Ferrajoli (2014), remonta a tempos muito mais remotos, com profunda inspiração nos ideais de Beccaria, Bentham, dentre outros.

Em uma singela síntese, que só se explica pelo limite do presente texto, o garantismo prega a existência de um sistema jurídico que se guie pela defesa dos inocentes.

Isto é, toda a estrutura deve se guiar de forma a impedir (ou reduzir ao máximo) a possibilidade de punição a um inocente, ainda que ao custo da impunição a um culpado.

Por isto, claros limites legais para a atuação dos órgãos públicos incumbidos da investigação, da acusação e do julgamento. Daí a necessidade de observância dos Direitos e Garantias de todo e qualquer cidadão que se veja acusado de cometer um fato delituoso. Por isto precisamos de um processo que se dê com espaço de enfrentamento igualitário entre as partes e que o juiz possa, fundamentadamente, tomar a sua decisão. E, com base em tudo isto, que temos a fundamental garantia da presunção de inocência, onde a dúvida deverá, sempre, ser vista em favor do Acusado.

Nossa Constituição, como todas as Constituições das democracias modernas incorporou estes ideais garantistas, por acreditar na defesa dos inocentes, por crer que a gravidade da punição de um indivíduo inocente pode ser muito mais grave do que a impunidade a um culpado.

Não temos como pensar em um sistema imune a erros, enquanto formos operados por seres humanos (e que assim sempre o seja) estaremos sujeitos às idiossincrasias inerentes à nossa espécie, dentre elas: a falibilidade.

O que o garantismo prega é um sistema de redução de danos e que reduza o máximo a possibilidade do mais grave dos erros: a punição de um inocente.

O garantismo e a imensa maioria dos criticados em tom pejorativo de garantistas não é contra a punição, mas entende que é possível punir garantindo e garantir punindo.

O respeito às regras do jogo e a exigência de uma atuação estatal dentro dos limites legais não pode ser associada à defesa de bandidos, muito menos com assassinos do povo.

Não podemos tratar coisas complexas de maneiras simplistas. O referido manifesto peca em pontos fundamentais: a polarização, a generalização e a prepotência.

A polarização é um conveniente redutor de complexidade, como ensina Rui Cunha Martins, tudo é reduzido a um código binário e, com isto, fica fácil compreender o mundo, que sempre estará entre certo e errado, bem e mal, bandido e mocinho e etc.

Isto despreza as enormes variações por detrás de todos os indivíduos e instituições. É muito cômodo eu me intitular o bem, o certo, o justo e, a partir disto, tudo o que for contrário à minha forma de pensar e ao que eu acredito, deve ser rotulado de mal, errado e injusto.

A complexidade e o dinamismo de nossas relações sociais não cabem em soluções tão simplistas, reduzir desta forma é negar (ou não querer enxergar) o problema. Basta que consigamos ver a quantidade de cidadãos de bem envolvidos nas mais profundas sujeiras, a quantidade de policiais acusados de inúmeros crimes, bem como promotores, advogados e juízes condenados por crimes no exercício de suas atuações.

Ao lado da polarização, para que esta possa funcionar e a categorização seja mais facilitada, é muito importante que haja a generalização, ou seja, se coloca todos em determinadas categorias para que fique mais fácil separar o nós do eles.

Com isso se consegue fazer fantasiosas associações e colocar como defensores da criminalidade aqueles que lutam, tão somente, pela observância da nossa Constituição, que nada mais é do que o documento que nos constitui enquanto cidadãos e enquanto nação.

Mas para que estas generalizações e polarizações possam ser construídas, é necessário uma boa dose de prepotência.

Prepotência esta que permite ao indivíduo se colocar como do bem e como único que pretende defender a sociedade e que quer terminar com a violência que tanto agride a nossa sociedade.

Uma enorme crença em si mesmo que faz com que se intitule o único capaz de compreender a forma pela qual a violência deve ser tratada, ignorando que esta prática de maiores penas e maiores rigores na aplicação da lei é adotada há décadas e a violência está longe de diminuir.

Um total fechamento ao pensamento diverso que impede a compreensão de que todos estão querendo a mesma coisa: mais segurança. E que negar que a política pública meramente repressora e encarceiradora (nos modelos de presídios que temos hoje no país) está apenas reproduzindo mais criminosos e aumentado o poder das facções.

Isto faz com que qualquer discurso que tente questionar este estado de coisas, seja rapidamente rotulado de bandidólatra, esquerdista, petralha, dentre tantos outros.

É prepotente o discurso institucional que ataca a defesa de Direitos, pois se coloca em um patamar de infalibilidade.

Não queremos um processo com todas estas garantias? Que seja compreendido como um espaço de dúvida? Então devemos imaginar que a polícia não comete excessos, não erra nas investigações, devemos acreditar então que o Ministério Público não denuncia inocentes

Zombar do garantismo e fazer estas simplistas associações interessa apenas àqueles que desprezam questionamentos e limites sobre os seus atos.

Não podemos acreditar em soluções mágicas, em simplificações rasteiras, em polarizações generalizantes, tampouco em poder sem limites.

Em uma democracia, o limite ao poder é um pressuposto básico e ninguém nem nenhuma instituição pode atuar despido de limites claros aos seus atos.

Talvez o garantismo penal assuste aqueles que não querem limitações no seu agir, que não querem arcar com o custo de se atuar em conformidade com a lei e com a Constituição.

Então, não esqueçamos de sempre questionar e de compreender a coisa na dimensão de sua complexidade.

Não concordar com o garantismo é perfeitamente normal, mas associá-lo à morte do povo, que ele visa defender, é um erro grave que só pode ser atribuído à má-fé.

O sistema de garantias é de garantias de todos os indivíduos, independente de quem sejam e de qual a acusação que pese em seu desfavor.

Para aqueles que quiserem seguir acreditando que o Garantismo é o sistema de defesa de bandidos e que deve ser banido por aqueles signatários do manifesto que só buscam a defesa do bem, não esqueçam que as maiores atrocidades que nossa história viveu foram justificadas como em nome da ordem, do bem, do são sentimento, dentre tantos outros pseudo-argumentos, falaciosos e enfeitizantes.

Por isso, sempre é importante o questionamento de Agostinho Ramalho Marques Neto: quem me protegerá da bondade dos bons? Lhes digo, certamente, um garantista.

REFERÊNCIAS

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2014.

Por Daniel Kessler de Oliveira
Fonte: Canal Ciências Criminais

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