Transgênero tenta alterar documentos, e promotor diz que isso 'contraria o ordenamento jurídico'

goo.gl/BzQD2s | Um promotor de Justiça de Curitiba disse em um parecer enviado à Justiça que o pedido feito por uma pessoa transgênero para mudar os documentos pessoais "contraria frontalmente o ordenamento jurídico". O caso corre na Vara de Registros Públicos de Curitiba. O promotor designado para o caso é Inácio de Carvalho Neto.



O pedido foi feito à Justiça por Nathan Kirshner Tatsch, que nasceu num corpo feminino, mas que nunca se identificou como mulher e gostaria de ser tratado como homem pela sociedade.

A afirmação de Neto consta em um parecer sobre o caso enviado à Vara de Registros Públicos de Curitiba, no dia 12 deste mês. Para ele, a troca é "juridicamente impossível". Em todo o documento, ao qual o G1 teve acesso, o promotor trata Nathan como mulher.

"O pedido de mudança de gênero feminino para masculino contraria frontalmente o ordenamento jurídico, sendo juridicamente impossível, eis que o gênero de cada indivíduo é determinado pelo médico no momento do nascimento, não sendo passível de alteração posterior", afirma.

No documento, Neto afirma que nem uma eventual cirurgia para a troca de sexo seria suficiente para que a troca de gênero nos documentos da pessoa que fez o pedido seja feita.

"Ainda que a requerente venha a realizar a cirurgia para a troca de sexo, essa cirurgia irá lhe atribuir um sexo que não tem e nem poderá ter, pois trata-se de uma cirurgia cosmética, não alterando seu sexo jurídico, não havendo que se falar em sexo masculino, eis que não há mudança completa dos órgãos internos, mas uma mudança meramente externa", disse no documento.

O promotor reconheceu que o procedimento não foi realizado. Para ele, isso "torna o pedido ainda mais absurdo, pois a alteração atribuiria à autora um sexo que não possui nem aparentemente".

De toda forma, mesmo que Nathan queira efetuar a troca de sexo por meio de cirurgia, o promotor também se posiciona contra a mudança de nome. Ele ainda acredita que isso configuraria crime, de acordo com o Código Penal, já que o procedimento "pode acarretar na inutilização permanentemente da função reprodutora".

'Manifestação me chocou', diz advogado

O advogado Vítor Leme, que representa Nathan, diz que o caso ainda não foi decidido pela Justiça, mas que a manifestação do promotor não era esperada. "Essa manifestação me chocou por isso, mas conversando com outros colegas, eles falaram que essa manifestação é recorrente na Vara de Registros Públicos", diz. Para ele, a manifestação do promotor "é rasa em termos jurídicos, em conteúdo jurídico e sobre o caso, sobre transexualidade".

Leme conta que tinha entrado com o pedido na Vara de Família, mas que o juiz acabou declinando a competência e encaminhou a situação para a Vara de Registros Públicos. "Ainda não existe no Tribunal de Justiça uma regulamentação sobre a competência", explica.

Ainda de acordo com o advogado, Nathan está bem decidido sobre a mudança nos documentos e afirma que ele não tem qualquer problema sobre isso.

"Não tem problema algum, com a família. O primeiro contato nunca é muito bom, mas hoje em dia a família reconhece ele como homem", diz Leme.

Sobre a visão do promotor de uma possível infração criminal que Nathan poderia cometer caso quisesse trocar de sexo, o advogado compara o procedimento a outros adotados por pessoas heterossexuais. "Esse promotor deve achar que cirurgias de vasectomia e laqueadura sejam passíveis de uma denúncia", acredita. "A gente acredita que não há nenhuma necessidade de cirurgia para a retificação de nome", diz.

Ministério Público apoia pedido

Em nota, o Ministério Público do Paraná afirmou que, institucionalmente, apoia pedidos de retificação no registro civil, independente da realização de cirurgias para a mudança de sexo. "Tanto é assim que, somente neste ano, a Promotoria de Justiça das Comunidades de Curitiba, por meio do Projeto Justiça nos Bairros, já se manifestou em 31 ações, de forma favorável, à alteração do nome no registro civil quando não condizente com a identidade de gênero da pessoa", afirma trecho da nota.

Sobre o posicionamento do promotor, o MP-PR diz que ele possui independência funcional, ou seja, pode agir sem se prender às convicções da instituição para a qual trabalha e emitir pareceres de acordo com o que considera correto. A análise dele, porém, está "sujeita a análise do juiz da Vara de Registros Públicos que, eventualmente, pode decidir de forma contrária àquele entendimento".

O G1 tentou contato com o promotor Inácio de Carvalho Neto, mas ele não foi encontrado até a última atualização desta reportagem.

Veja a íntegra da nota do Ministério Público do Paraná

Nota de Esclarecimento

Em relação aos pedidos de mudança de nome e de sexo que chegam ao Ministério Público do Paraná, esclarece-se que:

1) O posicionamento institucional é pela possibilidade de retificação do registro civil em ações ajuizadas por pessoas LGBTs, independente da realização de cirurgia de readequação sexual, nos termos de entendimento do Superior Tribunal de Justiça, do Conselho Nacional do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça.

2) Tanto é assim que, somente neste ano, a Promotoria de Justiça das Comunidades de Curitiba, por meio do Projeto Justiça nos Bairros, já se manifestou em 31 ações, de forma favorável, à alteração do nome no registro civil quando não condizente com a identidade de gênero da pessoa.

3) Além disso, o Ministério Público do Paraná criou, em 29 de janeiro de 2014, pela Resolução nº 0269/2014-PGJ, o Núcleo de Promoção dos Direitos de Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais no âmbito do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos, responsável por toda matéria relacionada ao asseguramento dos direitos da população LGBT no Paraná.

4) No âmbito da própria instituição, vigora a Resolução nº 2077/2015-PGJ, que assegura a todas as pessoas o uso do nome social no Ministério Público do Paraná desde maio de 2015.

5) A manifestação da Promotoria de Justiça de Registros Públicos, Acidentes de Trabalho e Precatória Cíveis de Curitiba, divulgada nesta quarta-feira, 20 de setembro, pela imprensa, insere-se no âmbito da independência funcional assegurada aos membros do Ministério Público (artigo 127, § 1º da Constituição Federal), estando sujeita a análise do juiz da Vara de Registros Públicos que, eventualmente, pode decidir de forma contrária àquele entendimento.

Por Samuel Nunes, G1 PR, Curitiba
Fonte: g1 globo

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