Armar guardas municipais é o avesso do Estatuto do Desarmamento - Por Cristiana Fortini

goo.gl/zHBSQ6 | O debate sobre a moldura do poder de polícia e os atores capazes de exercê-lo ainda estampa estudos de direito administrativo. Atividade complexa, a envolver elaboração normativa a traçar-lhe os contornos e uma série de ações administrativas entre as quais a aplicação de sanção, é indiscutível que sua manifestação visa acautelar o interesse público, ajustando o comportamento privado.

Em antítese com os serviços públicos que se materializam em prestações que ambicionam prover o destinatário de comodidades ou utilidades[1], o poder de polícia não se preordena a gerar benesse fruível individualmente, mas, ao revés, pode impor certo desconforto exigindo fazer, suportar ou não fazer algo.

O tema já árduo assume maior complexidade quando se indaga sobre a possibilidade de empregados públicos exercerem as atividades administrativas do poder de polícia. Nem se diga quanto a discussão se estende à presença de empresas pertencentes a particulares.

De um lado rotulada como ilícita, ao fundamento de que a referida atividade administrativa demanda estabilidade dos agentes públicos por ela responsáveis, a fim de lhes conferir a independência necessária ao desempenho livre de pressões, sem mencionar o fato de seu vínculo jurídico dar-se com entidades de direito privado da administração, por outro lado pode ser defendida considerando o fato de que os empregados públicos gozam de alguma proteção, ainda que não da estabilidade de que cuida o art. 41 da Constituição da República, porque sua relação jurídica se estabelece com entidades jungidas pelos princípios da impessoalidade, moralidade, motivação. [2] [3]

Outro possível argumento para a defesa do exercício da atividade administrativa do poder de polícia por empregados públicos diz respeito à imutabilidade do regime jurídico a ela inerente, que permanece inalterado, em suas sujeições e prerrogativas. Assim, tanto quanto o serviço público não perde sua característica, ainda que não executado diretamente pelo Estado, nos moldes do artigo 175 da Constituição da República, o poder de polícia não perderia sua essência, obrigando os que dela se encarregam a observar o mesmo conjunto normativo.[4]

Fato é que a questão é controversa. Belo Horizonte aguarda o pronunciamento do STF no Recurso Extraordinário 633.282 (Tema 532 da repercussão geral).

O recurso extraordinário foi interposto após pronunciamento do STJ no Recurso Especial 817.534/MG, cuja conclusão foi contrária à atuação de sociedade de economia mista[5]. A decisão está assim ementada:

“ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. TRÂNSITO. SANÇÃO PECUNIÁRIA APLICADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. IMPOSSIBILIDADE.

1. Antes de adentrar o mérito da controvérsia, convém afastar a preliminar de conhecimento levantada pela parte recorrida. Embora o fundamento da origem tenha sido a lei local, não há dúvidas que a tese sustentada pelo recorrente em sede de especial (delegação de poder de polícia) é retirada, quando o assunto é trânsito, dos dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro arrolados pelo recorrente (arts. 21 e 24), na medida em que estes artigos tratam da competência dos órgãos de trânsito. O enfrentamento da tese pela instância ordinária também tem por consequência o cumprimento do requisito do prequestionamento.

2. No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista).

3. As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupo, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção.

4. No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito, esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação); a emissão da carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento); a Administração instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade estabelecida em lei (fiscalização); e também a Administração sanciona aquele que não guarda observância ao CTB (sanção).

5. Somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público.

6. No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro - aplicação de multas para aumentar a arrecadação.”

A resistência do STJ focou-se no fato de que o ente da administração pública seria sociedade de economia mista, o que, segundo o entendimento ali refletido, não se amolda à atividade de fiscalização e punição. Importante ressalvar que a entidade objeto do julgado, vista com maior acuidade, identifica-se com empresa pública, porque ausente, na prática, capital privado. O alicerce do julgado não se sustenta.

As costumeiramente apontadas fragilidades do regime de emprego público não foram enfrentadas no acórdão. O centro da discussão envolveu a natureza da entidade, não a natureza do liame laboral.

A despeito disso, fato é que a matéria é controvertida. A discussão jurídica existe e a qualquer momento o STF sobre ela se debruçará, definindo se agentes de trânsito, vinculados a entidades da Administração Pública Indireta, de natureza jurídica de direito privado, podem ou não se dedicar às atividades de fiscalização e sanção.

Nesse cenário de incerteza, soa insensato o Projeto de Lei que altera o art. 6º da Lei 10.826, de 22.12.2003, que dispõe sobre o Estatuto do Desarmamento.

O referido projeto acrescenta o inciso XII, ao artigo 6º do Estatuto, admitindo, doravante, que possam portar arma de fogo, quando no exercício de suas funções, “os agentes das autoridades de trânsito, conforme conceituado pelo Anexo I da Lei 9.503, de 23 de setembro 1997 – Código de Trânsito Brasileiro, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que não sejam policiais, quando em serviço.”. Assim, autoridades de trânsito municipais, servidores públicos estatutários de cargo efetivo ou empregados públicos, considerando a celeuma antes retratada, passam a poder portar armas.

Sob a alegação de que os agentes de trânsito estão sujeitos a situações de violência, o Projeto de Lei objetiva salvaguardá-los, entendendo que armá-los é protegê-los.

O PLC foi aprovado no dia 27 de outubro, contando com votos favoráveis dos senadores Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), Gleisi Hoffmann (PT-PR), Eduardo Amorim (PSDB-SE), José Medeiros (PSD-MT), Wilder Morais (PP-GO), Humberto Costa (PT-PE), Hélio José (PMDB-DF), Fátima Bezerra (PT-RN). Os senadores que o rejeitaram, entre os quais o senador Cristovam Buarque, alertaram para o risco de intensificar ainda mais os riscos a que sujeitos os agentes de trânsito. Nas palavras do senador “Guarda de trânsito não ganha para prender ou matar bandidos. Armar mais as pessoas não é a solução. Por que não armar os motoristas de táxi, os motoristas de caminhão? Daqui a pouco vamos querer armar toda a população.”

O Projeto de Lei é polêmico e no mínimo intempestivo.

Ausente a segurança jurídica para que os agentes de trânsito, se empregados públicos, possam atuar na fiscalização e punição, o que dizer da concessão de porte de armas?

Evidente que o debate não se encerra aí, razão pela qual eventual decisão do STF não inibiria o continuar das discussões. Mas a dúvida, por si só, indica que a alteração legal é açodada.

Somam-se outros elementos que precisam ser considerados. Ou seja, superada estivesse a questão dos empregados públicos, e ainda que se cogitasse apenas de servidores estatutários de cargo efetivo a cuidar do trânsito, deve ser analisada razoabilidade do projeto.

O porte de armas é assunto sensível. O recente episódio ocorrido nos Estados Unidos da América, de que resultaram dezenas de vítimas fatais e mais de quinhentos feridos, simboliza a questão.

No Brasil, adotou-se política restritiva, fixando regra geral refratária ao porte de armas, consoante se infere da Lei 10.826/03, conhecida como Estatuto do Desarmamento.

O Projeto de Lei respalda o porte de armas caso dos agentes de trânsito, admitindo, então, a personagens desprovidos da competência para zelar por segurança pública portar armas.

Isso porque por agente ou autoridade de trânsito pessoa, civil ou policial militar, credenciada pela autoridade de trânsito para o exercício das atividades de fiscalização, operação, policiamento ostensivo de trânsito ou patrulhamento, conforme prevê o Anexo I da Lei 9.503/97, Código de Trânsito Brasileiro. Então, para além dos militares, cujo porte de armas já é consentido pelo artigo 6º, II da Lei 10.826/03

Questiono a proporcionalidade da medida em face da atividade de que cuidam os agentes de trânsito. De se verificar se a autorização, exceção que é, não traduz um passo perigoso para que outros agentes públicos venham a reclamá-la, incendiando a busca por armamento.

Os jornais cotidianamente informam sobre professores, médicos, enfermeiros e assistentes sociais, atuantes na esfera pública, vítimas de ameaças e violências. Se a justificativa é a insegurança a que estão submetidos os agentes de trânsito, não há porque a autorização se limitar a eles. Pouco a pouco outras categorias também postularão. Deve-se indagar se é isso que se deseja e qual o fundamento técnico a sustentar essa política pública, porque a liberdade para formata-la é limitada e não rima com decisões descalçadas de elementos técnicos.

No caso dos agentes de trânsito outras preocupações devem ser consideradas.

São frequentes os conflitos entre motoristas e agentes de controle de trânsito. A presença de armas de fogo não apazigua o cenário, mas antes o rende mais violento, dai podendo resultar mortes.

Também não podemos ignorar que a medida, se aprovada, alcança agentes da esfera municipal.

Os citados entes já assoberbados com tarefas múltiplas sem o aparato para tanto necessário terão ainda que se dedicar ao tema, com os gastos a ele inerentes, sem falar no incremento da possibilidade de ações de reparação civil por lesões fatais ou não perpetradas ou sentidas por agentes de trânsito.

Enfim, na nossa avaliação o Projeto de Lei é no mínimo questionável.
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1 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2005

2 A Lei Federal 9.962/00, que aborda o regime de emprego público na União, suas autarquias e fundações, estabelece lista taxativa para as hipóteses de rescisão unilateral do contrato, pela administração pública, de trabalho por prazo indeterminado

3 Sugere-se ler MENDONÇA, José Vicente Santos de. Estatais com poder de polícia: por que nao? Revista de Direito Administrativo. V 252, P. 97-118.

4 A respeito do tema, conferir: VIEIRA, Ariane Shermam Morais. Os limites à delegação do exercício do poder de polícia estatal: análise sobre a possibilidade de atuação dos particulares. 2016. 182f. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Regulação, fiscalização e sanção: fundamentos e requisitos da delegação do exercício do poder de polícia administrativa a particulares. Belo Horizonte: Fórum, 2013.

5 Na linha adotada, se uma sociedade de economia mista está impedida de atuar, o que dizer de entidades particulares?

Por Cristiana Fortini
Fonte: Conjur

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