A conformidade penal da Lei 13.718/2018 e o crime de importunação sexual - Por Daniel Lima

goo.gl/DZwj1z | A Lei nº. 13.718/2018, publicada na terça-feira (25/09/2018), altera o Código Penal brasileiro para inserir o artigo 215-A que estabelece o crime de importunação sexual, classificado no rol de crimes contra a liberdade sexual. Segundo o dispositivo é crime

"Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.

A pena cominada para o ato é de reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se não constituir crime mais grave.

Considerada anteriormente como contravenção penal, no art. 61 da Lei de Contravenções Penais, onde a prática de “importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor” era punida com multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, o dispositivo penal deixa de considerar o pudor como fato determinante, para inserir como delito a prática de ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou de outrem.

Note-se que o crime não pode confundir-se com a hipótese de estupro, quando a conduta tipificada é de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.

É que no caso do estupro há uma violência ou grave ameaça que constrange alguém a praticar o deixar que com ele se pratique ato libidinoso, conquanto no crime de importunação sexual não há essa violência ou ameaça grave: o ato é praticado sem a anuência da vítima, e não há agressão contra ela para que se permita o ato.

Essa diferenciação é extremamente importante na medida em que se reconhece que não se trata de uma hipertipificação ou hipercriminalização, isto é, a criação de novos tipos penais (autônomos) para fatos que já se enquadravam em outras tipificações (LIMA, MUNIZ NETO, 2018b).

É que, sendo norma que incrementa o poder punitivo do Estado, reduzindo, por consequência, o status libertatis do indivíduo, não é demais que se exija do legislador a total cautela e sobriedade na utilização das palavras (RABELO, 2016).

Afinal, no fenômeno penal e processual penal é significativo ter em mente que as palavras dizem coisas, sendo elas limites de legalidade, e portanto necessário trabalhar profundamente sobre seus significados (LOPES JR., 2014). Assim sendo, obviamente que, constranger alguém com violência ou ameaça para que se permita a prática do ato libidinoso se distingue da conduta de praticar o ato sem a anuência da vítima.

Exemplo claro do encaixe da supracitada norma foi o caso ocorrido em 29 de agosto de 2017, no qual um homem “assediou” uma mulher dentro de um ônibus ao ejacular em seu pescoço (CARTA CAPITAL, 2017). À época, o magistrado do caso entendeu que não houve violência e que a ação não configurava crime de estupro, mas apenas contravenção penal.

Em sua justificativa, o juiz afirmou que ao ejacular no pescoço da passageira, o agente do ato não foi violento nem ameaçou a vítima. “Na espécie, entendo que não houve o constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça, pois a vítima estava sentada em um banco do ônibus quando foi surpreendida pela ejaculação do indiciado”, ponderou.

No início do corrente ano, entretanto, o ato se repetiu (G1, 2017). Os casos levantaram polêmica a respeito da configuração do crime de estupro ou não nestes casos, bem como a eficácia da caracterização da prática como contravenção penal e a ofensa ao pudor.

Diversos juristas, advogados e movimentos sociais, sobretudo em defesa da liberdade e emancipação da mulher, se levantaram contra a decisão dos magistrados nos casos mencionados, elevando a discussão a um nível de necessidade de criminalização e tipificação das condutas similares.

O novel crime de importunação sexual tem como bem jurídico protegido a liberdade sexual da vítima, tanto que foi neste capítulo que o tipo penal foi inserido. Contudo, “deve ser ato doloso capaz de satisfazer a lascívia do agente e ofender a liberdade sexual da vítima ao mesmo tempo”.

Assim, o crime veio para coibir as manifestações referidas anteriormente, visando a punição de um ato que nitidamente configura a violação à liberdade sexual, mas não pode (em razão das circunstâncias fáticas) ser considerado como estupro.

"Criminalizar a importunação sexual de forma autônoma é impedir que não seja conferido um tratamento mais brando para as situações nas quais a mulher é nitidamente constrangida, assediada (LIMA, MUNIZ NETO, 2018a).

A lei, pois, inseriu o crime como forma de preencher um hiato legislativo existente quando da prática de atos dessa natureza.

Neste sentido, a respeito das singularidades do crime, anote-se que é crime comum, isto é, pode ser praticado por qualquer pessoa, sendo ou não do mesmo sexo ou gênero que a vítima. Esta, por sua vez, também pode ser qualquer pessoa, incluído aí também os vulneráveis (LOPES JR., et all, 2018).

O elemento subjetivo sempre será o dolo direto e especial, isto é, a vontade livre e consciente de satisfazer a própria lascívia ou de terceiros. O momento consumativo será com efetiva prática do ato libidinoso, admitindo tentativa. É possível a concessão da sursis processual em razão da cominação da pena mínima de um ano, sendo a ação penal pública incondicionada, assim como todas as decorrentes dos crimes sexuais, (LOPES JR., et all, 2018).

A bem da verdade, a criação do crime de importunação sexual caracteriza um avanço em um Direito Penal machista (neste sentido, vide os textos anteriores da coluna em que se abordou a temática de gênero na análise de vários tipos penais), e que, em nome da promoção da proporcionalidade, resultava em situações de impunidade em crimes contra a liberdade sexual (LOPES JR., et all, 2018; LIMA, MUNIZ NETO, 2018a).

A cultura do estupro – reconhecidamente presente no Brasil – merece freios estatais sempre. Deve-se evitar, todavia, que em nome do bem se promova mais violência, especialmente contra as vítimas, que tiveram ceifada a ação pública condicionada à representação (LOPES JR., et all, 2018; LIMA, MUNIZ NETO, 2018a).

O que se percebe com a inclusão do crime de importunação sexual é a divisão dos atos libidinosos em crimes distintos, o primeiro com violência ameaça, com vias inclusive à conjunção carnal, e o segundo – trazido pela legislação em análise – que reverbera os casos de beijos forçado, apalpadas não consentidas, e demais atos libidinosos em que a vítima não concedeu autorização ao agente.

Esses últimos, que antigamente se tentava adequar aos casos de estupro, em clara violação ao princípio da legalidade, apelando-se, no momento da dosimetria da pena e em busca de resguardar (pelo menos) o princípio da proporcionalidade enquanto princípio norteador do nosso ordenamento jurídico, agora têm subsunção perfeita ao tipo penal, justamente como prescrevem – em viés contraposto – as garantias do acusado no processo penal.

Logo,

"Conferir um tratamento mais rigoroso para situações em que há uma intromissão indevida na esfera de liberdade sexual da vítima é necessário para fins de prevenção geral. No que tange a importunação sexual, a incriminação é importante para tutelar as situações em que o constrangimento praticado em desfavor da vítima não configura estupro, que foi o que ocorreu no caso da ejaculação no ônibus em São Paulo (LIMA, MUNIZ NETO, 2018a).

Ora, não há dúvidas que a legislação deu importante passo na caminhada pelo reconhecimento das liberdades sexuais e punição das respectivas violações, sobretudo em atenção às condutas observadas no mundo moderno, em que a presença de violência ou ameaça nem sempre se percebe num caso de violação de liberdade sexual.

Com efeito, a legislação trouxe ainda o respeito efetivo aos princípios da legalidade e da proporcionalidade na aplicação das penas (mormente em comparação à sanção cominada em caso de estupro), pois aos casos em que não havia violência, inexistia tipo penal específico para classificá-los.

Portanto, com a tipificação da conduta de importunação sexual essa problemática cessa, abrangendo os casos em que a violência simbólica, moral, ou psicológica se manifestam, tendo em vista a complexa verificação de tipos penais que não deixam vestígios.

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REFERÊNCIAS

CARTA CAPITAL. Caso de ejaculação em ônibus não configura estupro, afirma juiz. Disponível aqui. Acesso em 28 set 2018.

LIMA, Daniel, MUNIZ NETO. Estupro e gênero: evolução histórica e perspectivas futuras do tipo penal no Brasil. Canal Ciências Criminais, 2018a. Disponível aqui. Acesso em 28 set 2018.

LIMA, Daniel, MUNIZ NETO. Revenge Porn. Canal Ciências Criminais, 2018b. Disponível aqui. Acesso em 28 set 2018.

LOPES JR., Aury. Teoria Geral do Processo é danosa para a boa saúde do Processo Penal. Consultor Jurídico. Disponível aqui. Acesso em 28 set 2018.

LOPES JR., Aury; ROSA, Alexandre Morais da; BRAMBILLA, Marília; GEHLEN, Carla. O que significa importunação sexual segundo a Lei 13.781/18? Disponível aqui. Acesso em 28 set 2018

RABELO, Ítalo Menezes. A conformidade constitucional na aplicação da norma penal: uma análise processual penal da Lei nº. 11340/06. 1 ed. Florianópolis: Habitus, 2016.

G1. Homem é detido por ejacular em mulher dentro de ônibus no Centro de SP. Disponível aqui. Acesso em 28 set 2018.

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Daniel Lima
Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Advogado.
José Muniz Neto
Mestrando em Direito Penal e Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal e Processo Penal.
Maricy Fideles
Administradora. Advogada. Professora. Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes/RJ, em Direitos Fundamentais pelo IBCCRIM/SP e Instituto Ius Gentium Conimbrigae do Centro de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra/PT.
Fonte: Canal Ciências Criminais

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