Reflexões sobre pronúncia e a recente decisão do STJ - Por Rodrigo de Oliveira

goo.gl/QH17MK | Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça, por sua Quinta Turma, decidiu que os elementos de investigação produzidos na fase do inquérito policial não se afiguram suficientes à prolação de uma decisão de pronúncia, tema que já foi objeto de notícia aqui mesmo no Portal Jurídico Canal Ciências Criminais (STJ, 5.ª Turma, Ag Rg no REsp 1.740.921/GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 06.11.2018).

O fato é que a notícia me trouxe um caso à memória e, daí, à reflexão.

Coisa de uns dois anos atrás, o sujeito estava em férias, a passeio em outra cidade, e, como gosta do assunto, entrou no Fórum local e descobriu que estava iniciando uma sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri.

O sujeito sentou-se na última fileira de cadeiras e passou a assistir o julgamento.

Para sintetizar, o caso versava sobre um homem acusado da morte de um seu irmão. O fato teria acontecido na zona rural, em meio a uma lavoura. Não havia testemunhas presenciais do crime.

A testemunha-chave da acusação, por assim dizer, era uma vizinha que, segundo constou no depoimento prestado na fase do inquérito policial, dizia ter visto o acusado caminhando, próximo de onde fora encontrado o corpo da vítima, com a camisa encharcada de sangue.

Pois bem. Essa mesma testemunha, quando chamada a depor na instrução do processo, tomado seu compromisso, passou a relatar espontaneamente a cena por ela presenciada. Dizia a testemunha, desta feita, ter visto o acusado com a camisa com manchas. Nada disse ela, neste momento, quanto a manchas de sangue, menos ainda quanto a estar a vestimenta encharcada.

Quando perguntada pelo membro do Ministério Público, que tinha diante de si o depoimento produzido na fase investigatória, a testemunha-chave falou: “Olha, doutor, ele estava com a camisa suja, eram manchas parecidas com cor de sangue”.

Detalhe (ou melhor, bem mais do que um detalhe): antes de ser avistado pela testemunha-chave da acusação, o acusado estava trabalhando na roça. Era verão, ele manejava uma enxada e mexia na terra.

Indagada com mais firmeza, a testemunha, que, estas alturas já perdera a condição de “testemunha-chave”, explicou que, na Delegacia de Polícia, falara a mesma coisa, ou seja, que havia avistado o acusado caminhando pela via rural, trajando uma camisa com manchas de cor que se assemelhava à de sangue.

Quer dizer, por esses “mistérios insondáveis”, constou no depoimento formal algo bem diferente do que, efetivamente, foi dito pela testemunha.

Para quem atua no Júri e conhece seus meandros e suas peculiaridades, não é difícil perceber a existência de “anos-luz” de diferença entre uma testemunha dizer ter visto o acusado do crime caminhando próximo ao local dos fatos e vestindo uma camisa encharcada de sangue, e dizer que o viu, mas vestindo uma camisa com sujeira de uma cor que parecia ser cor de sangue.

Infelizmente, o sujeito, por motivos imperiosos, não pode ficar até o final, para ver o desfecho do julgamento.

Mas, antes mesmo que a defesa técnica pudesse fazer uso da palavra em plenário, um raciocínio se impunha: é provável que o acusado fosse mesmo o autor do crime. Os autos mostravam antiga desavença entre os irmãos. Mas é fato que a circunstância de o acusado estar vestindo uma camisa com mancha de cor escura era perfeitamente explicável. Quer dizer, havia a probabilidade de que não fosse o autor do crime. Sabido que, em Direito Penal, probabilidade não pode parir uma condenação.

O acusado estava trabalhando em uma lavoura, trabalhando a terra com o emprego de uma enxada. Era verão, fazia intenso calor. Em resumo, as sujidades nas vestes muito bem poderiam ser da terra com a qual o increpado estava tendo contato. E o suor pode ter feito com que a camisa ficasse grudada no corpo (embora a testemunha, em Juízo, tivesse repelido a expressão “encharcada”).

Em verdade, parece cuidar-se de questão de meridiano raciocínio.

Se os elementos do inquérito, por si só, bastassem à pronúncia, qual o sentido, então, da instrução processual?

Como (quase) todos sabem e muitos fazem questão de ignorar, o inquérito policial tem a destinação de subsidiar a formação, ou não, da opinio delicti pelo Ministério Público. Oferecida a denúncia e recebida esta pelo juiz, é indeclinavelmente no âmbito do Poder Judiciário, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, com a observância do devido processo legal, que as provas deverão ser produzidas.

Constitui rematada arbitrariedade e insolente violação à Constituição Federal pretender levar alguém a julgamento pelo Tribunal do Júri, o qual se reveste de conhecidas particularidades (onde as “imagens” falam mais do que páginas e páginas de processo), sem apoio em elementos probatórios produzidos no âmbito do processo judicial.

A  pronúncia na recente decisão do STJ


Com inteira razão o Ministro Ribeiro Dantas, ao assentar:
"Na hipótese em foco, optar por solução diversa implica inverter a ordem de relevância das fases da persecução penal, conferindo maior juridicidade a um procedimento administrativo realizado sem as garantias do devido processo legal em detrimento do processo penal, o qual é regido por princípios democráticos e por garantias fundamentais. Em outras palavras, assentir com a tese defendida pelo Ministério Público seria considerar suficiente a existência de prova inquisitorial para submeter o réu ao Tribunal do Júri sem que se precisasse, em última análise, de nenhum elemento de prova a ser produzido judicialmente. Contudo, essa não foi a opção legislativa. Diante da possibilidade da perda de um dos bens mais caros ao cidadão – a liberdade, o Código de Processo Penal submeteu o início dos trabalhos do Tribunal do Júri a uma cognição judicial antecedente. Perfunctória, é verdade, mas munida de estrutura mínima a proteger o cidadão do arbítrio e do uso do aparelho repressor do Estado para satisfação da sanha popular por vingança cega, desproporcional e injusta.
Exatamente essa última passagem constitui um dos melhores argumentos para sustentar-se a decisão adotada pelo STJ: prova que pode conduzir a uma condenação penal é apenas aquela produzida no espaço judicializado, em ato presidido por autoridade equidistante das paixões, com a presença e atuação da Acusação e da Defesa e a possibilidade de contraditório e amplitude defensiva.

Enfim, tudo reside na observância da Constituição.

Rodrigo de Oliveira Vieira
Advogado criminalista. Ex-Promotor de Justiça.
Fonte: Canal Ciências Criminais

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