Maus antecedentes podem ser eternos? Análise do julgamento do HC 162.305-SP

goo.gl/ukEbT2 | Por meio do Habeas Corpus 162.305-SP, buscava-se a revogação da prisão preventiva, decretada no bojo de processo relativo ao crime de tráfico de drogas, em que o paciente acabou por ser condenado à pena de 5 anos de reclusão, a ser cumprida inicialmente no regime fechado, além do pagamento de 500 dias-multa. No julgamento monocrático, concedeu-se a ordem de ofício, com base no entendimento de que o registro criminal que foi considerado pelo juízo de origem para afastar a aplicação da causa especial de diminuição de pena do parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/2006 (“tráfico privilegiado”) não poderia ter sido caracterizado como mau antecedente, em face do decurso de mais de cinco anos da data do cumprimento da pena anterior.

A decisão pontuou que “a Constituição veda expressamente, na alínea ‘b’ do inciso XLVII do artigo 5º, as penas de caráter perpétuo. Tal dispositivo suscita questão acerca da proporcionalidade da pena e de seus efeitos para além da reprimenda corporal propriamente dita (...). Dessa forma, entendo que, decorridos mais de cinco anos desde a data da extinção da pena da condenação anterior (CP, art. 64, I), não é possível alargar a interpretação de modo a permitir o reconhecimento dos maus antecedentes”. Não se tratou de entendimento inédito do STF. A decisão replicou outros julgamentos semelhantes, como o HC 126.315-SP (relator ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. em 15/9/2015) e o RHC 118.977-MS (relator ministro Dias Toffoli, 1ª Turma, j. 18/3/2014), que igualmente firmaram posição no sentido da aplicabilidade do lustro legal da reincidência aos maus antecedentes.

Pois bem. Em primeiro lugar, está correta a decisão quando sustenta que “a possibilidade de sopesarem-se negativamente antecedentes criminais, sem qualquer limite temporal, ad aeternum, em verdade, mostra-se pena de caráter perpétuo revestida de legalidade”. Com efeito, a regra é a prescritibilidade das penas, reservando-se sua imprescritibilidade apenas para duas hipóteses, expressamente contemplados pela Constituição Federal: o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, a teor dos incisos XLII e XLIV do artigo 5º, da Constituição. À exceção desses dois casos, todas as penas são vocacionadas à extinção, quer seja pelo cumprimento, quer seja pelo decurso dos próprios prazos prescricionais.

Se as próprias penas principais devem ser executadas dentro de certo lapso, não se revela proporcional que qualquer de seus efeitos, dentre eles a produção de maus antecedentes, perdure ad infinitum. Por vezes, um único mau antecedente pode ser mais decisivo para a fixação da pena do que qualquer outra circunstância. Basta se verificar o próprio crime de tráfico de drogas, objeto da decisão em comento. Um único registro criminal possui o condão de elevar a pena do patamar mínimo de 1 ano e 8 meses para 5 anos de reclusão[1]. Por isso, é acertada a decisão no que toca à necessidade de as condenações criminais definitivas se submeterem a um prazo, findo o qual elas não mais poderiam mais ser caracterizadas como maus antecedentes e, assim, influenciar negativamente na fixação da pena.

Entretanto, discorda-se da decisão em comento, que estabelece esse prazo em cinco anos, por não parecer adequado que o interstício seja idêntico àquele da reincidência. Ora, já que ambos os institutos apenas se configuram a partir de condenações criminais definitivas[2], a única diferença conceitual entre eles é a submissão expressa da reincidência ao lustro depurador, previsto no artigo 64, I, do CP. Deveras, ao menos sob o texto da lei, uma condenação criminal apta a configurar reincidência se transformará em mau antecedente a partir do transcurso do quinquênio legal, todavia, um mau antecedente nunca poderá voltar a assumir a natureza de reincidência[3].

Entretanto, estendido o prazo de cinco anos aos maus antecedentes, na prática, eles serão absolutamente coincidentes com a reincidência. Todavia, essa identificação não se compatibiliza com a mens legis, que atribui maior severidade à reincidência. Por exemplo: (1) enquanto os antecedentes podem elevar a pena-base, jungindo-se a certa discricionariedade judicial[4], a reincidência impõe o aumento de pena, na segunda fase da dosimetria[5]; (2) somente a reincidência determina, automaticamente, a fixação de regime inicial de cumprimento de pena mais severo do que o contemplado para o quantum de pena, ao passo que os maus antecedentes podem servir para esse mesmo desiderato[6]; (3) a reincidência, como regra, impede a conversão em penas alternativas[7] e a concessão de sursis[8], ao passo que os maus antecedentes não o fazem, automaticamente[9]; (4) apenas a reincidência influencia no prazo do livramento condicional[10], faz interromper o prazo de prescrição da pretensão executória[11] e impõe o alongamento dos prazos para a progressão de regime em se tratando de crimes hediondos e assemelhados[12].

Com isso, a produção de efeitos mais suaves dos maus antecedentes em relação à reincidência sugere que, em tese, aqueles devem se submeter a um prazo mais elastecido do que esta. Seria conveniente uma modificação no Código Penal, a fim de que se estabeleçam prazos, em regra mais alongados que os cinco anos do artigo 64, I, CP, para que condenações criminais definitivas possam ser caracterizadas como maus antecedentes.

Sugere-se, lege ferenda, a aplicação dos prazos prescricionais previstos no artigo 109 do CP. Assim, a partir do cumprimento ou da extinção da pena, concomitantemente ao lapso de cinco anos da reincidência, passariam a fluir os prazos para a contagem dos maus antecedentes, coincidente com as faixas estabelecidas para os prazos prescricionais, a partir da pena concretamente fixada. Com isso, os maus antecedentes poderiam interferir na nova pena, desde que inseridos nos marcos legais de 20, 16, 12 ou oito anos, a depender do montante da reprimenda definitiva. Por outro lado, não deverão ser considerados os prazos de quatro e três anos, previstos, respectivamente, nos incisos V e VI do artigo 109 do CP, porque eles são inferiores a cinco anos, de modo que ficarão por este abrangidos, porque, como se viu, a reincidência possui a aptidão de agravar mais incisivamente a pena do que os maus antecedentes e, por isso, não é razoável que estes se submetam a prazos menores do que o lustro legal.

Ainda que não exista a pretendida alteração legislativa, o critério que ora se sugere parece ser um porto seguro para nortear a atividade judicial, que, embasada no postulado da prescritibilidade das penas, conseguirá certo equilíbrio na duração dos efeitos dos maus antecedentes, ao mesmo tempo em que os diferenciará da própria reincidência.

[1] Desde que considerada a maior diminuição da pena prevista no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei 11.343/2006 (2/3), que é obstada pela presença de mau antecedente.
[2] Para Reale Júnior, entretanto, o conceito de antecedentes é bem mais amplo do que a mera “folha de papel”, devendo abarcar a forma de vida em uma visão abrangente, “examinando-se o seu meio de sustento, a sua dedicação a tarefas honestas, a assunção de responsabilidades familiares” (REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal – parte geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 407). Com o devido respeito, parece mais adequado considerarmos como antecedentes apenas as condenações criminais já transitadas em julgado, jungidas à folha de antecedentes e certidões criminais, já que o próprio art. 59 do CP, com a Reforma de 1984, também estabelece a conduta social e a personalidade do agente como circunstâncias judicias, restringindo-se o campo normativo dos antecedentes (NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 473).
[3] O próprio STJ já se manifestou nesse sentido: “Se o réu ostenta mais de uma condenação definitiva, não há ilegalidade na utilização de uma delas na fixação da pena-base e de outra no reconhecimento da reincidência, com acréscimo na segunda fase do cálculo penal. O que não se admite, sob pena de bis in idem, é a valoração de um mesmo fato em momentos diversos da aplicação da pena, circunstância esta não evidenciada na hipótese. Precedentes” (STJ, HC 289.974-SP, 5ª Turma, rel. Mina. Laurita Vaz, 19.08.2014, v.u.).
[4] O artigo 59 do CP recomenda ao juiz a observância a sete circunstâncias judiciais para a eleição da pena-base, com vistas à satisfação da reprovação e à prevenção do crime.
[5] O artigo 61 do CP é enfático ao estabelecer circunstâncias que sempre agravam a pena, desde que não constituam ou qualifiquem o crime, evitando-se o bis in idem.
[6] Art. 33, § 2º, b e c, do CP, em contraposição ao seu § 3º. Mas, mesmo para a reincidência, dispõe a Súmula 269 do STJ: “É admissível a adoção do regime prisional semiaberto aos reincidentes condenados a pena igual ou inferior a quatro anos se favoráveis as circunstâncias judiciais”.
[7] Art. 44, II, do CP, atentando-se, contudo, à permissão de seu parágrafo 3º.
[8] Art. 77, I, CP.
[9] Art. 44, III e art. 77, II, ambos do CP.
[10] Art. 83, I, II e V, do CP.
[11] Art. 117, VI, do CP.
[12] Art. 2º, § 2º, da Lei 8.072/90.

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Thiago Baldani Gomes De Filippo é juiz de Direito, doutorando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Comparado pela Samford, Cumberland School of Law (EUA), e em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp).
Fonte: Conjur
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