Normas penais em branco heterogêneas e o princípio da legalidade – Por Thiago Cabral

goo.gl/QXne1i | Inicialmente, cumpre esclarecer que normas penais em branco heterogêneas são aquelas em que o complemento da referida lei é proveniente de fonte legislativa diversa da norma em branco. As normas penais em branco se configuram como um fenômeno recente do direito penal e têm adquirido cada vez mais espaço nas legislações penais contemporâneas. Tais normas são assim são chamadas porque não estão completas por si e exigem uma norma auxiliar para o perfeito entendimento do tipo penal.

Essa modalidade legislativa, contextualizando, pode ser vista como uma demanda da sociedade pós-moderna, na qual o direito penal assume um papel de gestor de riscos sociais. Com isso, o direito penal passa a ser visto como regulador dos setores sociais criadores de riscos, impondo, sob pena de sanção, que estes assumam condutas dirigidas a reduzir ou impedir o incremento do perigo de determinadas atividades. Esse fenômeno é chamado como administrativização do Direito Penal, por meio do qual o direito penal assume o papel do direito administrativo.

Como exemplo, pode-se citar o artigo 33 da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), onde o dispositivo do referido diploma legal é oriundo do Congresso Nacional e seu complemento se dá através da Portaria n. 344/98/MS, proveniente do Poder Executivo, mais precisamente da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que é uma agência reguladora, sob a forma de autarquia de regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde.

Para melhor visualização, importante se faz a transcrição do artigo da Lei 11.343/2006, citado no parágrafo anterior:

"Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

Neste diapasão, verificamos que as normas penais em branco heterogêneas afrontam cabalmente o Princípio da Legalidade, haja visto que, conforme exemplo supracitado, temos um ato do Poder Executivo, no caso, uma resolução da ANVISA, regulando e definindo o que é crime.

Dessa forma, para melhor entendimento do exposto, revela-se imperioso a transcrição do artigo 5o, II da Constituição Federal e do artigo 1o do Código Penal, dispositivos que evidenciam a presença do Princípio da Legalidade em nosso ordenamento Jurídico:

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Art. 1º – Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

Assim, as normas penais em branco não estão em conformidade com o Princípio da Legalidade, haja vista que o referido princípio define que apenas Lei Ordinária Federal poderá definir o que é crime, e contra tal entendimento, as normas penais em branco heterogêneas, em diversos momentos no ordenamento jurídico brasileiro, acabam por definir determinadas condutas como crime.

Nestes termos, o conteúdo da norma penal em branco heterogênea poderá ser modificado sem que haja uma discussão amadurecida da sociedade a seu respeito, como acontece quando os projetos de lei são submetidos a apreciação de ambas as Casas do Congresso Nacional.

Neste sentido, relevante se faz a lição dos Mestres Nilo Batista, Zaffaroni, Alagia e Slokar, quando asseveram:

"Não é simples demonstrar que a lei penal em branco não configura uma delegação legislativa constitucionalmente proibida. Argumenta-se que há delegação legislativa indevida quando a norma complementar provém de um órgão sem autoridade constitucional legiferante penal, ao passo que quando tanto a lei penal em branco quanto sua complementação emergem da fonte geradora constitucionalmente legítima não se faz outra coisa senão respeitar a distribuição da potestade legislativa estabelecida nas normas fundamentais. O argumento é válido, mas não resolve o problema. Quando assim se teorizou, as leis penais em branco eram escassas e insignificantes: hoje, sua presença é considerável e tende a superar as demais leis penais, como fruto de uma banalização e administrativização da lei penal. A massificação provoca uma mudança qualitativa: através das leis penais em branco o legislador penal está renunciando à sua função programadora de criminalização primária, assim transferida a funcionários e órgãos do Poder Executivo, e incorrendo, ao mesmo tempo, na abdicação da cláusula da ultima ratio, própria do estado de direito.

Registre-se, por oportuno, que o princípio da legalidade é o pilar do garantismo penal, fundamentado por Luigi Ferrajoli, que, parafraseado por Rogério Grecco, diz que:

"A constituição nos garante uma série de direitos, tidos como fundamentais, que não poderão ser atacados pelas normas que lhe são hierarquicamente inferiores. Dessa forma, não poderá o legislador proibir ou impor determinados comportamentos, sob a ameaça de uma sanção penal, se o fundamento de validade de todas as leis, que é a Constituição, não nos impedir de praticar ou, mesmo, não nos obrigar a fazer aquilo que o legislador nos está impondo.

Por mandamento do princípio da legalidade a Administração Pública está vedada, segundo seus juízos discricionários de oportunidade e conveniência, a dizer o que é penalmente proibido.

Sobre o tema, é necessário mencionar a irretocável lição de Alberto Silva Franco, que ensina:

"De nada valerá o reconhecimento, inclusive em nível constitucional, do princípio da legalidade, se o legislador produzir normas penais de conteúdo vago ou indefinido. É evidente, assim, que a técnica utilizada por ele na composição dos tipos penais assume uma importância capital para o sincero respeito ao princípio da legalidade. Como acentuou Rodriguez Mourullo, “pouco importa que se proclame programaticamente o princípio da legalidade, se depois não se determinam, com precisão e certeza, em distintas disposições legais, os pressupostos e as consequências. Sem esta segura determinação, o princípio nullum crimen mulla poena sine lege fica despojado de todo significado.

A imposição da vontade da Administração ou de outros órgãos que não passaram pela investidura de garantia da Lei em matéria criminal seria sintomática do próprio conceito de ato administrativo, que presta à manifestação de providências complementares à lei.

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Por Thiago Cabral
Pós-Graduando em Direito Penal e Processual Penal. Pós-Graduando em Ciências Penais. Advogado criminalista.
Fonte: Canal Ciências Criminais

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