Família terá que indenizar ex empregada em 1 milhão por trabalho análogo ao de escravo

bit.ly/2Ixm29Q | Trata-se de ação onde a Reclamante foi supostamente adotada sem qualquer formalidade na cidade de Curitiba-PR, em que a 1ª Reclamada a trouxe aos 7 (sete) anos de idade para São Paulo com a promessa a mãe da Reclamante de uma vida melhor.

Desde o primeiro dia, ou seja, desde os 7 (sete) anos, a reclamante atuou como empregada da família, sendo registrada somente aos 18 (dezoito) anos, recebendo a sua carta de alforria somente em 2016, aos 36 anos de idade, e aproximadamente após 30 anos de serviços a família.

Ao longo do contrato, a Reclamante ficou submetida a uma série de situações humilhantes:

- Nunca recebeu salários, a família tinha uma caderneta onde anotava um valor de salário, e ao mesmo tempo descontava: calcinhas, roupas, alimentação, fogão, gás entre outros.

- Nunca tirou férias, não sabe ler/escrever, nunca pode ter relacionamento, estudar, viajar, cuidar da sua saúde, não tem noções de higiene, nunca pode questionar, ou seja, a reclamante sempre foi um nada, além de uma serviçal.

Em 1º grau o Juízo condenou a família a pagar uma indenização de dano moral de R$ 150.000,00, horas extras, férias desde 2010, 13º e FGTS. Julgou improcedente o pedido de reconhecimento de condições análogas a de escravo e consequentemente não acolheu a tese da imprescritibilidade.

Após recurso ordinário apresentado pela família e pela ex-empregada/escrava, a 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região reformou a sentença condenando a família Reclamada aos seguintes pedidos:

- Reconheceu que a reclamante foi submetida a condições análogas a de escravo, consequentemente imprescritíveis todos os Direitos da empregada, tendo Direitos desde os 12 (doze) anos;

- Anotação da carteira de trabalho desde os 12 (doze) anos e pagamento de todas as verbas rescisórias da empregada;

- indenização por danos morais em R$ 1.000.000,00;
-  FGTS + 40%, indenização de seguro desemprego, av. prévio proporcional entre demais verbas rescisórias; e
- Pagamento de 30% dos salário mínimo em favor da reclamante desde 1992;

Destacamos como interessantes os seguintes trechos do acórdão:

“(...) A prova produzida nestes autos impressiona em dois aspectos: a) há incontrovérsia em relação aos fatos de que a reclamante foi trazida para a casa das reclamadas com 7 anos de idade (em 1987, aproximadamente) e lá ficou até 2016, quando, segundo depoimento da reclamante, em audiência, desentendeu-se com uma  pessoa da família e deixou o trabalho; b) nesses quase trinta anos  de convivência, reclamante permaneceu sem frequentar escolas, sem receber -- ao menos em certa parte desse período -- dinheiro pelos serviços que realizava, e  trabalhando desde muito jovem em serviços domésticos que favoreciam as rés
(...)
A própria testemunha apresentada pelos réus informou que começou a trabalhar para eles, em serviços domésticos, quando contava com treze anos e meio, deixando patente que a prática dos reclamados era mesmo a utilização da mão de obra infantil. Não custa relembrar, nesta altura, que o decreto 6.481/2008 -- que regulou os artigos 3o e 4o da Convenção 182 da OIT -- proíbe o trabalho doméstico para menores .
(...)
Como se vê, restou demonstrado que entre agosto de 2001 a outubro desse mesmo ano, a reclamante não recebeu nenhum valor em dinheiro, trabalhando para pagar a contribuição do INSS da empregadora e algumas outras necessidades básicas, numa espécie de truck system domiciliar, engendrado pelas  reclamadas.  
(...)
A ausência do pagamento de qualquer parcela do salário em moeda, acrescido da completa privação de instrução formal (não há indicação de que a reclamante tenha frequentado nenhuma escola, em qualquer momento da vida dela), além da utilização da mão de obra da autora, desde tenras idades, em serviços  reconhecidamente inadequados para menores (e realização de trabalho em idade onde a Constituição Federal proíbe que este ocorra) leva à conclusão de que a
reclamante esteve submetida a condições degradantes de trabalho, configurando-se, por isso mesmo, a hipótese do trabalho em condições análogas à do escravo. A soma das condutas adotas pelas demandadas redunda num obstáculo severo à liberdade da autora, na medida em que, privada não apenas de condições econômicas mínimas, mas também de informações e conhecimento que pudessem permitir a ela um grau ínfimo de autonomia na sociedade contemporânea, restou, a autora, limitada a manter-se servindo aos empregadores, como única forma conhecida por ela para assegurar a própria sobrevivência  
(...)
Portanto, como visto acima, a Convenção Americana de Direitos Humanos
(que no artigo 6o proíbe, expressamente, o trabalho escravo, sem admitir exceções em nenhuma circunstância, mesmo em casos de guerras e perigos públicos) é texto supra legal, hierarquicamente acima da CLT e demais textos trabalhistas, de sorte que a prescrição prevista no artigo 11 do diploma consolidado não a atinge.
Da mesma forma, o artigo 7o da Constituição Federal trata dos direitos do
trabalhador e não do escravo (ou do equiparado a ele), razão pela qual, da mesma forma, a prescrição do referido texto maior não se aplica a casos como o dos autos.
Destarte, face à importância internacional da proibição do trabalho escravo, relacionado ao bem jurídico da liberdade, essencial ao ser humano, considero que não há prescrição prevista para tal tipo jurídico no universo do direito do trabalho e afasto a declaração em sentido contrário, constante da brilhante sentença proferida pela origem  
(...)
Em verdade, o que se percebe é que as privações a que a reclamante foi submetida, especialmente aquelas relacionadas à educação formal e salário, submeteram-na a uma espécie tão aguda de prejuízo intelectual, que é difícil afirmar se a autora, desligando-se das rés com 36 anos de idade, conseguirá, de alguma forma, adquirir condições de desenvolver qualquer tipo de atividade legal que venha a garantir a ela condições de, com independência, sobreviver na nossa sociedade contemporânea, conseguindo recursos para residir, alimentar-se, vestir-se, medicar-se, etc.  
(...)

Os empregadores e a casa deles foi todo o universo que a reclamante teve consigo, por quase trinta anos de vida. Eram os pais, a família, os amigos e os senhores da demandante  tudo ao mesmo tempo. Infelizmente, no quesito trabalhista, a relação nunca transcendeu a fronteira da severa ilegalidade, aproximando-se, como dito acima, da utilização mais cruel da mão de obra, onde a obreira esteve à mercê da direção do empregador não apenas no mister que desenvolvia, mas na própria e precária vida que conseguiu viver.
Sendo assim, entendo, com todo respeito ao elogiável trabalho da origem, que a indenização postulada pela obreira, de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) é, efetivamente, o valor que deve ser deferido e que, por conta do quadro já aqui narrado, pode servir como paliativo para as privações e sofrimento que marcarão a vida da autora, como sequelas que não se sabe se algum dia se resolverão (...)”

TRT 2ª Região processo 1002309-66.2016.5.02.0088

Nossas considerações: 

O presente caso é muito delicado, visto que há em jogo à vida de uma pessoa que viveu enclausurada por praticamente toda a sua existência, e pior, como bem observado pela turma julgadora, se um dia será possível ela se recuperar de todo o trauma em que foi submetida

Diariamente nos deparamos com diversas Injustiças, mas, no presente caso, embora nada pague aquilo que a nossa cliente sofreu, é muito gratificante tentar proporcionar a mesma a ter a possibilidade uma vida digna com a decisão obtida através do nosso trabalho, bem como agradecemos a confiança da mesma e enfatizamos a nossa responsabilidade até a concretização do caso.

Ainda há possibilidade de recurso ao Tribunal Superior do Trabalho pela família.

Anexos: decisão em PDF

Advogados:
Fernando Zanellato (sócio de Zanellato Advogados) e Estácio Airton Alves Moraes (sócio de Weigand e Silva Advogados).
O presente caso é conduzido com a participação dos dois escritórios.

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