Via @jornaloglobo | Com um pano de fundo ornado por bandeiras e telefones antigos, Putin invoca o direito internacional antes de declarar que conduziria uma “operação especial” no território ucraniano. Quase que de maneira concomitante, António Guterres, o secretário-geral da ONU, em reunião extraordinária do Conselho de Segurança, conclama o respeito ao direito internacional.
Também no Conselho, o Brasil, representado pelo embaixador Ronaldo Costa Filho, rememora que “o sistema de segurança coletiva das Nações Unidas baseia-se, em última análise, no pilar do direito internacional”. Diversos chefes de Estado e mais altos diplomatas e representantes de organizações também fizeram referência ao assim chamado “direito das gentes”. Mas, no fim das contas, qual é o papel do direito internacional na crise ucraniana que avulta-se lugubremente sobre o planeta?
Em primeiro lugar, há a proibição do uso da força — presente na Carta da ONU e no direito costumeiro — que comporta um número limitadíssimo de exceções. Em suma, legítima defesa e autorização do Conselho de Segurança. Outras hipóteses são ainda incipientes e não encontram respaldo na prática dos Estados — este é o posicionamento da Corte Internacional de Justiça, órgão judiciário da ONU. Dentre as teses avançadas e articuladas por Moscou, a noção de legítima defesa preventiva não reverberou bem no passado, na segunda invasão do Iraque pela coalizão liderada pelos Estados Unidos, em 2003.
Integridade territorial e incolumidade das fronteiras continuam sendo uma das regras mais importantes desde 1945, quando o concerto jurídico atual se condensou — também com participação russa. Não por acaso, o Brasil incorpora em sua Constituição como guia de sua política externa princípios internacionais como a soberania, a não intervenção, a solução pacífica de controvérsias e a autodeterminação dos povos. Não há espaço para discussão sobre o reconhecimento e a inflexibilidade dessas regras: elas são valores fundamentais da comunidade internacional.
Sobre a secessão
Sobre a autodeterminação dos povos, presente tanto em tratado como na jurisprudência internacional, não se pode confundir seu escopo: todo povo tem sim direito à autonomia, voz e participação dentro de um Estado. Contudo, o direito à autodeterminação não se traduz em um direito à secessão.
O reconhecimento por parte de qualquer Estado da independência de um governo ou de outro Estado gera efeitos imediatos tão somente para o Estado que reconhece; não é um passe de mágica que faz nascer Estados. Os atos seguintes subsequentes podem configurar violação da integridade territorial alheia. Também um reconhecimento prematuro pode, inclusive, configurar violação da integridade territorial alheia.
Mas há uma regra especial particularmente negligenciada nos debates atuais sobre o tema: o dever de não reconhecimento de situações criadas por uma violação grave de importantes regras internacionais, uma regra advinda do regime de responsabilidade internacional. Ou seja, Estados terceiros devem se abster de apoiar violações. Como o linguajar diplomático bem sabe, mesmo o silêncio, ou deixar de condenar uma ilegalidade, podem gerar implicações jurídicas.
Se o direito internacional não foi contundente o suficiente para evitar a perda de vidas humanas e o desencadear do conflito, suas próximas indicações (no campo das sanções, das regras dos conflitos armados e nos acordos de estabilização do conflito) serão preciosas para guiar, avaliar e mesmo condenar as violações ocorridas na crise da Ucrânia. O direito internacional já serviu para que situações ilegais não fossem reconhecidas no passado e poderá também fazê-lo no futuro.
Por Aziz Tuffi Saliba e Lucas Carlos Lima *
* São professores de Direito Internacional da UFMG e respectivamente presidente e diretor do ramo brasileiro da Associação de Direito Internacional
Fonte: oglobo.globo.com