Essa tese foi defendida pelo Ministério Público Federal em parecer apresentado ao Superior Tribunal de Justiça sobre recurso especial contra decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que negou o recebimento de denúncia contra um ex-agente da ditadura (Audir Santos Maciel) e dois médicos legistas (Harry Shibata e Pérsio José Ribeiro Carneiro) por envolvimento na morte de Neide Alves dos Santos, militante do então Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 7 de janeiro de 1976, aos 31 anos de idade.
O MPF defende que as normas previstas nos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil devem prevalecer sobre o regramento nacional, para garantir que crimes de lesa-humanidade sejam devidamente investigados, julgados e coibidos.
Neide foi presa em 6 de fevereiro de 1975 e encaminhada ao DOI-Codi paulista. No dia 21 daquele mês, foi transferida ao DOI-Codi do Rio de Janeiro, onde foi feita sua identificação, tendo sido fotografada e fichada. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade (CNV), ao ser solta, ela procurou familiares que moravam no Rio. Na ocasião, apresentava sinais de tortura por todo o corpo e estava debilitada.
=Ela foi internada em um hospital e depois voltou a trabalhar em São Paulo, onde teria sido novamente presa. O último contato mantido com os familiares foi no Natal de 1975. Em 8 de janeiro do ano seguinte, a família recebeu a notícia de que Neide havia morrido.
=A versão da morte da militante apresentada pela polícia à época informou que Neide ateou fogo ao próprio corpo, em praça pública, e foi encaminhada por duas pessoas não identificadas ao Hospital do Tatuapé, na capital paulista. O laudo necroscópico foi assinado pelo legista Pérsio José Ribeiro Carneiro, médico que assinou outros laudos de militantes assassinados pelos órgãos da repressão política. Ao contrário de outras vítimas do período, o nome de Neide não aparecia em nenhuma das listas ou dossiês de mortos e desaparecidos da ditadura feitos pelos familiares.
Audir Santos Maciel, acusado de homicídio qualificado, era comandante do Destacamento de Operações e Informações (DOI-Codi) do II Exército e participou da operação que resultou na captura e no assassinato da vítima. Já os médicos Harry Shibata e Pérsio José Ribeiro Carneiro foram denunciados por falsidade ideológica, tendo sido responsáveis por forjar um laudo necroscópico que omitia as verdadeiras circunstâncias da morte.
Ao defender o recebimento da ação penal apresentada pelo Ministério Público Federal em São Paulo, o parecer assinado pelo subprocurador-geral da República Mario Bonsaglia lembrou que em 2010, por ocasião do julgamento do caso referente à Guerrilha do Araguaia, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Brasil a não mais aplicar a Lei de Anistia como forma de impedir a investigação de casos considerados de graves violações de direitos humanos.
O MPF sustentou ainda que, em 2018, no processo referente ao jornalista Vladimir Herzog (preso, torturado e morto durante a ditadura militar), a Corte IDH confirmou a ocorrência de crime contra a humanidade e considerou que instrumentos da legislação brasileira como a Lei de Anistia e a prescrição não poderiam afastar a persecução penal dos delitos.
Manifestação
No parecer, Bonsaglia também pediu a alteração do entendimento firmado pelo STJ de que cabe ao Supremo Tribunal Federal verificar os efeitos das decisões da Corte IDH nos casos de Vladmir Herzog e da Guerrilha do Araguaia, com a harmonização das leis brasileiras e a jurisprudência relativa à Lei da Anistia. Na ocasião, o STJ entendeu não ser possível afastar normas brasileiras que regem a prescrição com o objetivo de tornar imprescritíveis crimes contra a humanidade. A corte decidiu também que não é possível caracterizar uma conduta praticada no Brasil como crime contra a humanidade sem que exista na legislação brasileira a tipificação de tal crime.
Ao requerer a modificação desse entendimento, Bonsaglia lembrou que o Estado brasileiro, voluntariamente, submeteu-se à jurisdição da Corte IDH ao ratificar, em dezembro de 1998, cláusula da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
"Ao fazer isso, o Estado brasileiro obrigou-se não apenas a respeitar os direitos garantidos na convenção, mas também a assegurar seu livre e pleno exercício, mediante a adoção de medidas afirmativas necessárias e razoáveis para investigar, coibir e responsabilizar aqueles que afrontam os direitos ali assegurados."
Bonsaglia argumentou também que, nesse cenário, as normas brasileiras ficam sujeitas a uma dupla aferição de sua validade e aplicabilidade: a adequação à Constituição e às convenções internacionais assinadas pelo país. No caso da Lei da Anistia, o parecer do MPF ressaltou que, embora a norma tenha sido julgada válida pelo STF, não foi validada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A avaliação do MPF é que as obrigações estabelecidas para o Brasil pela Corte IDH devem ser executadas principalmente em relação ao dever do Estado de conduzir eficazmente a investigação penal.
"É necessário determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções de que a lei disponha, para os crimes de desaparecimento forçado e outros correlatos ocorridos durante o regime militar, que se revestem de especial gravidade, na medida em que atingem toda a coletividade e exorbitam os limites toleráveis de ofensa a direitos fundamentais, enquadrando-se como crimes de lesa-humanidade, os quais não estão submetidos à prescrição", finalizou Mario Bonsaglia. Com informações da assessoria de imprensa do MPF.
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Fonte: ConJur