Prevaleceu o voto divergente do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que ressaltou que o caso foi marcado, desde a investigação, por declarações contraditórias e ausência de provas independentes, e que as retratações reforçam a dúvida razoável sobre a ocorrência dos fatos.
O caso
Segundo a defesa, representada pela advogada Flávia Cardoso Campos Guth, a denúncia, oferecida em 2014 pelo MP/MG, baseou-se inicialmente nos depoimentos de duas supostas vítimas. Após ouvi-las e analisar laudos, o parquet concluiu pela existência de "contradições relevantes", inclusive sobre a presença de outras vítimas, e pediu o arquivamento.
Menos de dez dias depois, um conselheiro tutelar - que, de acordo com a defesa, tinha intenções políticas e foi posteriormente afastado por decisão judicial em ação civil pública por conduta incompatível com o cargo - apresentou-se como vítima e insistiu no desarquivamento. A reabertura das investigações, segundo a defesa, não resultou em novas provas relevantes.
Durante a instrução, as vítimas teriam apresentado versões "extremamente confusas e profundamente contraditórias", com inclusão de fatos e pessoas não mencionados antes.
A 1ª instância absolveu; o TJ/MG reformou e condenou a 15 anos de reclusão; embargos infringentes restabeleceram a absolvição; e, em decisão monocrática, o ministro Félix Fischer, no STJ, restabeleceu a condenação. O trânsito em julgado ocorreu em 15/6/22.
Retratações
Após a condenação, duas das três vítimas procuraram assistência social e se retrataram.
A primeira retratação, em 27/7/22, foi formalizada em ação de justificação judicial; a segunda, em 24/10/23, por ata notarial. Ambas afirmaram não terem sido abusadas nem testemunhado abusos, e declararam que mentiram em juízo por influência da terceira vítima, com o objetivo de obter vantagem econômica.
Para a defesa, a condenação baseou-se exclusivamente na palavra das vítimas, já considerada contraditória nas instâncias ordinárias, o que tornaria as retratações suficientes para rescindir o julgado.
Voto do relator
O relator, ministro Rogério Schietti Cruz, votou pela improcedência do pedido de revisão criminal. Logo no início, frisou que o caso envolve estupro praticado duas vezes, na forma continuada, e estupro de vulnerável, em concurso material, com três vítimas.
Segundo Schietti todas as vítimas prestaram depoimentos tanto na fase de inquérito quanto em juízo, narrando atos sexuais de diversas naturezas e apontando o acusado como autor. Uma semana após o trânsito em julgado da condenação, duas dessas vítimas se retrataram: apenas uma por meio de ação de justificação judicial, considerada pela jurisprudência como meio adequado, com participação do juiz e do MP; a outra fez declaração em cartório.
Nesse sentido, destacou a importância da justificação judicial para evitar sucessivas revisões criminais motivadas por mudanças de depoimento, comuns nesse tipo de crime.
"Eu não tenho condições, e acredito que ninguém aqui tem, de afirmar com segurança o que efetivamente ocorreu, se esses fatos se deram como narrado na versão inicial ou na versão final. O fato é que houve um processo judicial em que, como qualquer outro, se asseguraram ao acusado o respeito a todas as suas garantias processuais (...)."
Acrescentou que havia outros elementos, como relatos de conselheiros tutelares que disseram ter sido ameaçados, inclusive com o acusado lançando o carro contra eles em frente ao fórum. Uma vítima também teria manifestado medo ao depor ao MP.
"Portanto, me parece que, em uma ação de revisão criminal, para se desconstituir este título, precisaríamos ter, se não uma certeza absoluta, pelo menos uma dúvida bem razoável de que houve um erro judiciário, de que as provas foram indecitamente colhidas, de que não se respeitou a lei, de que houve falhas processuais, de que houve falsidade de depoimentos. E esta dúvida, agora, não me permite, segundo creio, desconstituir o julgado", conluiu o ministro.
Contradições
O ministro Reynaldo Soares da Fonseca abriu divergência para julgar procedente a revisão criminal. Relembrou que, na fase investigativa, o Ministério Público pediu arquivamento por inexistência de justa causa e que, ao longo do processo, as instâncias ordinárias registraram contradições significativas nos depoimentos.
Segundo o ministro, as vítimas, em todas as oportunidades em que foram ouvidas, apresentaram versões divergentes para fatos relevantes, não souberam indicar quando ocorreram os delitos e, em alguns casos, nem mesmo descreveram se houve violência ou grave ameaça. As testemunhas, mães e conselheiros tutelares, não presenciaram os fatos e nada esclareceram sobre sua dinâmica.
Para Reynaldo, a retratação de duas das três vítimas - ambas afirmando que mentiram em juízo por influência da terceira - reforça dúvidas já existentes desde o início, em um cenário sem provas independentes de corroboração.
"Trazido assim o contexto processual dos autos, no qual houve pedido de arquivamento da investigação, além da sentença e do acordão absolutório, tem-se que a retratação de duas vítimas se soma, de forma relevante, a todas as dúvidas que permearam os fatos desde o início, não se identificando provas independentes que possam subsidiar a manutenção da condenação."
O ministro citou ainda parecer do MPF favorável à procedência e precedentes do STJ que admitem absolvição quando a condenação se baseia exclusivamente em depoimentos posteriormente retratados. Ressaltou que, se para absolver basta a dúvida, para condenar é necessária a certeza, e que uma condenação não pode se apoiar em suposições.
Resultado
A divergência foi acompanhada pelos ministros Ribeiro Dantas, Messod Azulay Neto, Sebastião Reis Júnior e pelo desembargador convocado Carlos Cini Marchionatti.
Ficaram vencidos, com o relator, os ministros Og Fernandes, Joel Ilan Paciornik e o desembargador convocado Otávio de Almeida Toledo.
Assim, por maioria, a 3ª seção decidiu por acolher a revisçao criminal e absolver o condenado.
• Processo: RvCr 6.094