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Cartórios do Rio são alvo de denúncias por fraudes com documentos falsos, desvios e venda de bens de vítimas

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[ Assista AQUI ] Via @portalg1 | Papel, selo, caneta e carimbo. Objetos simples, mas com o poder de arruinar a vida de alguém.

“Mais de 20 anos correndo atrás e você vê o negócio sumir assim, do nada... realmente é revoltante”, afirmou o filho de uma idosa que teve bens perdidos por fraude.

“É mais do que traição. É se sentir usado, se sentir manipulado. É uma sensação horrível de impotência mesmo”, disse Raquel Otila, empresária.

“Quem vai imaginar que vão te roubar uma sepultura?”, questionou Maria Ana Neves, publicitária.

O caso da sepultura

O que aconteceu no cemitério São João Batista, na zona sul do Rio de Janeiro, há 20 anos, ainda está cercado de mistério.

A história começou quando Maria Ana descobriu que a sepultura da família estava vazia. Os restos mortais da irmã e dos pais, enterrados ali, haviam desaparecido.

“Entrei em pânico. Foi aí que comecei a tentar entender o que estava acontecendo e pesquisar sobre esse assunto”, contou Maria Ana Neves.

A sepultura havia sido vendida por R$ 60 mil com o uso de uma procuração falsa.

“Eu entendi porque esvaziaram o meu jazigo. Era pra vender. Pro meu espanto, me aparece uma procuração com uma assinatura completamente diferente da minha”, relatou Maria Ana Neves.

A perícia da Polícia Civil comprovou: a assinatura era falsa.

O cartório que reconheceu a assinatura como verdadeira foi o 16º Ofício de Notas, na zona sul do Rio.

No fim do ano passado, a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Rio puniu a tabeliã Olívia Motta Scisinio com 30 dias de afastamento. Após recurso, a pena foi substituída pelo pagamento de multa.

Procurada pelo Fantástico, a defesa da tabeliã informou apenas que se manifestou no processo.

Na última sexta-feira, a Justiça cancelou a procuração falsificada e devolveu a propriedade do jazigo a Maria Ana.

“Até hoje eu não sei onde foram parar os restos mortais da minha família. Eu acho que eles foram para um ossário público, foram incinerados ou foram para o lixo mesmo”, lamentou Maria Ana Neves.

O caso Bid

Alcebíades Paes Garcia, o Bid, foi fuzilado ao chegar em casa após o carnaval na Sapucaí, em 2020. Três meses depois, ele teria registrado a própria assinatura em cartório.

O 12º Ofício de Notas reconheceu a firma de Bid quatro vezes após sua morte. O 15º Ofício fez isso nove vezes.

Um dos documentos permitiu a venda de uma moto aquática que pertencia ao bicheiro. O cartório marítimo percebeu a falsificação e acionou a polícia.

“Havendo essa lesão, a gente vai ter que apurar para saber em que circunstâncias ela teria acontecido, a motivação e as pessoas todas que teriam concorrido para que essa lesão acontecesse”, afirmou Marcos Buss, delegado da Polícia Civil.

Pedro Castilho, tabelião do 12º Ofício, e Fernanda Leitão, do 15º, foram punidos com suspensão pela Corregedoria da Justiça.

A decisão destacou que houve negligência no gerenciamento dos cartórios. Pedro Castilho não quis comentar. A pena está suspensa por liminar do STJ.

“Não importa as camadas de segurança que a gente implementa, não importa os níveis de mecanismos que a gente implementa para tentar evitar fraude. Eu sempre vou contar com a falha humana e com a ação criminosa”, disse Paulo Camargo, consultor de compliance do 15º Ofício.

“Quando recai dúvida sobre a autenticação de uma assinatura, o que está em risco é a segurança de todos os negócios jurídicos que são celebrados na sociedade”, afirmou o delegado Marcos Buss.

O caso Suassuna

Raquel Otila mora em Portugal e denunciou à polícia uma suspeita de fraude. Ela nega ter assinado cinco documentos: quatro procurações e um contrato.

Por 16 anos, foi casada com o ex-senador Ney Suassuna, do Republicanos. Após o fim do casamento, os dois não entraram em acordo sobre a divisão dos bens.

“Nessa época eu já não morava no Brasil. Eu sequer estava no país. Então, é impossível que eu tivesse assinado presencialmente essas procurações”, afirmou Raquel Otila.

Ela apresentou à Polícia Civil um documento da Polícia Federal que comprova que não estava no Brasil nas datas das assinaturas, entre maio de 2020 e novembro de 2021.

Na semana passada, o Ministério Público denunciou uma funcionária do cartório e Ney Suassuna por falsificação de documento público. A denúncia foi rejeitada pela Justiça por falta de provas.

O MP ainda não foi notificado da decisão e pode recorrer. A investigação contra o cartório continua na Corregedoria Geral da Justiça.

Ney Suassuna não quis gravar entrevista. Em depoimento à polícia, negou ter falsificado documentos e disse que pretende processar Raquel por denunciação caluniosa.

A Corregedoria abriu processo disciplinar para apurar possível falha gerencial da tabeliã Fernanda Leitão.

“É impossível exigir que a tabeliã seja onipresente, esteja ao lado de todos os funcionários 24 horas por dia enquanto eles praticam os seus atos. Se assim o fosse, não teria razão de ser dela ter funcionários”, afirmou Paulo Camargo.

O caso do precatório

Durante a pandemia, uma senhora de 82 anos recebeu uma carta da Receita Federal informando que havia caído na malha fina por não declarar um milhão de reais.

A família descobriu que ela tinha direito a um precatório — uma ordem judicial para pagamento de dívidas do governo — mas o dinheiro nunca chegou à conta dela.

“Depois de tantos anos batalhando por uma coisa, realmente é revoltante”, disse o filho da idosa, que preferiu não se identificar.

A chave do golpe foi uma procuração falsificada. Pelo documento, a idosa autorizava a advogada Laís Vale a sacar o dinheiro. A assinatura foi reconhecida por autenticidade no 15º Ofício de Notas.

A família procurou a polícia. Laís passou a ser investigada e teve o sigilo fiscal quebrado. O extrato bancário mostrou que o valor foi transferido para sua conta.

No dia seguinte, mais de R$ 600 mil foram repassados para outra conta. A advogada acusa Daniel Solis, que trabalhava no escritório responsável pelo processo, de ter pedido que ela recebesse o dinheiro.

“Eu não tinha conhecimento que essa procuração era falsa, com assinatura falsa. Ele me pediu pra eu receber o dinheiro e deixar na minha conta a parte dele”, afirmou Laís Vale.

“Eu acreditava que era de honorários da parte do Daniel. Em nenhum momento eu fiquei com dinheiro da idosa. Vou à delegacia, vou prestar meu esclarecimento. Vou falar o que tiver que falar”, completou Laís Vale.

O depoimento da advogada está marcado para amanhã. Daniel Solis ainda não prestou depoimento e não respondeu aos contatos da reportagem.

A responsabilidade dos tabeliães

O tabelião responde pessoalmente pelos atos praticados por seus substitutos ou escreventes autorizados.

A lei prevê quatro punições para tabeliães:

• Repreensão;

• Multa;

• Suspensão de até 120 dias;

• Perda da delegação.

A mais grave é a perda da delegação, que afasta o profissional em definitivo do cartório.

Foi o que aconteceu com Gilberto Gonçalves Augusto, responsável pelo 4º Ofício de Justiça de São Gonçalo. Ele também assumiu outro cartório após a morte do tabelião titular.

Gilberto Augusto foi acusado de desviar dinheiro público que deveria ter sido repassado ao fundo do Tribunal de Justiça. Nesta semana, a Corregedoria manteve a punição. Ainda cabe recurso. Procurado, ele e seu advogado não responderam.

Novas regras e mais punições

A tabeliã Fernanda Leitão recebeu outra punição: 75 dias de afastamento após a polícia encontrar selos do cartório dela em uma loja investigada por vender carros roubados com documentos falsos.

O advogado da tabeliã afirmou que o cartório está recorrendo de todas as punições citadas na reportagem.

“Hoje o 15º Ofício de Notas é um dos maiores cartórios de notas do Brasil. A gente acumula, nos últimos cinco anos, praticamente seis milhões de atos. Temos menos de 0,01% de atos questionados. E, dentre esses, estão inseridos esses quatro casos”, afirmou Paulo Camargo.

“Foram reforçados os procedimentos de segurança do cartório. Hoje a gente tem trocas de senha, autenticação de dois fatores... melhoramos muito nosso mecanismo”, completou Paulo Camargo.

Na semana passada, enquanto o Fantástico gravava esta reportagem, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio publicou novas regras.

Os cartórios serão obrigados a tirar fotos ou coletar impressão digital no momento da abertura de firma. Além disso, atos como escrituras, procurações públicas, atas notariais e testamentos deverão ser gravados em vídeo.

Encerramento distante

Para as vítimas, o desfecho dos casos está longe de um fim.

“Acho que a gente tem uma luta aí pela frente. Eu não quero que isso fique impune de jeito nenhum. De jeito nenhum”, afirmou a filha da idosa vítima do golpe do precatório.

“Tudo isso está na Justiça, está sendo investigado. E eu espero que a verdade apareça, só isso”, disse Raquel Otila.

O que diz a Corregedoria-Geral da Justiça do Rio de Janeiro

Em nota, a Corregedoria-Geral da Justiça do Rio reafirmou o compromisso com a integridade e a transparência no exercício da fiscalização. Ressaltou ainda que todos os indícios de irregularidades ou desvio de conduta são tratados e apurados com o máximo rigor, sempre de forma técnica, célere e responsável.

Também em nota, o Colégio Notarial do Brasil, que representa mais de oito mil tabelionatos no país, defendeu a urgência na integração entre todas as bases de dados dos órgãos de identificação civil. A entidade afirmou que a medida vai fortalecer os mecanismos de verificação de identidade e aperfeiçoar a segurança jurídica na prática dos atos.

A Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro informou que abriu um processo ético-disciplinar para apurar a conduta da advogada Laís Vale. Em relação ao advogado Daniel Sóllis, a OAB disse que todos os fatos novos serão objeto de apuração.

Sobre a venda da sepultura, entramos em contato com o escritório de advocacia que atende à Santa Casa de Misericórdia, responsável pelo jazigo na época da falsificação da procuração, mas não tivemos retorno.

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Por Redação g1, Fantástico
Fonte: g1

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