O direito à morte, a dignidade da pessoa humana e a eutanásia: por Flávia Guth

goo.gl/pzCUAz | Em 2005, o filme “Mar Adentro”, estrelado por Javier Bardem, ganharia o Oscar de melhor filme estrangeiro. “É um filme maravilhoso e comovente”, me disseram. Em breve resumo, o filme conta a história real de Ramón Sampedro, um mecânico de barcos que, aos 26 anos, ao dar um mergulho em águas rasas, sofreu múltiplos traumatismos em sua coluna e se viu tetraplégico irreversível. Apesar de os médicos lhe terem dado de três a cinco anos de vida, Ramón, viveu 25 anos de agonia à espera da morte. Seus últimos cinco anos foram vividos em luta judicial, em que pedia à Justiça espanhola que o permitisse morrer, já que entendia que sua condição lhe condenou a uma vida indigna e de absoluto sofrimento (em razão da tetraplegia, ele sequer conseguia suicidar-se).

O direito à eutanásia ativa voluntária não lhe foi concedido, tendo a Suprema Corte da Espanha entendido que esse procedimento se tratava, em verdade, de homicídio. Em 1998, Ramón foi encontrado morto por ingestão de cianureto. Um vídeo feito minutos antes de sua morte mostrava que uma pessoa de sua confiança o auxiliou a realizar a eutanásia. Por não poder viver como gostaria, Ramón queria, ao menos, morrer dignamente.

A história real de Ramón Sampedro tomou conta dos noticiários do mundo todo, caracterizada como morte assistida. Sua melhor amiga foi incriminada por homicídio, mas o caso foi arquivado por falta de provas. Estudos realizados em todo mundo revelaram que a questão da eutanásia ativa voluntária em pacientes com doenças terminais e lesões medulares tornou-se um problema epidemiológico.

Eu tinha apenas dois anos de formada quando o filme ganhou o Oscar. Não tinha a exata dimensão da profundidade do tema, suas repercussões e implicações no Brasil. Resolvi ler mais sobre o assunto e, em 2010, escrevi um pequeno trabalho, orientada pelo ministro Gilmar Ferreira Mendes, à luz do direito constitucional e da bioética. Os questionamentos que mais me incomodavam diziam respeito à existência ou não do direito de morrer dignamente e quais as implicações penais e sociais àqueles que auxiliam na realização da eutanásia.

Dignidade da pessoa humana

Os que acompanham semanalmente esta coluna já nos viram falar sobre um dos pilares fundamentais da nossa Constituição Federal (artigo 1º, III) que é o princípio da dignidade da pessoa humana. A dignidade humana, como atributo de todas as pessoas, tem valor absoluto e é condição prévia para o reconhecimento de todos os demais direitos. Sua conceituação é tarefa complexa, mas poderia ser resumida da seguinte forma: por ser o homem o fundamento e o fim de todo o direito, em qualquer de suas representações, um indivíduo, pelo simples fato de pertencer ao gênero humano, o torna credor de consideração e respeito, em todos os aspectos da vida social, por parte de seus semelhantes.

Em paralelo, a Constituição Federal também garante a inviolabilidade do direito à vida (artigo 5º, caput). Todavia, o Código Penal, por sua vez, ao tratar dos crimes contra a vida, nos artigos 121 e 122, afirma que é crime induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça, podendo a pena ser duplicada se a vítima tiver diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

Todavia, o mesmo Código Penal instituiu o tipo privilegiado de homicídio, no artigo 121, parágrafo 1º: “Se o agente comete crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral (…), o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”. Por sua vez, o Decreto-Lei 2.848/40 define que “por motivo de relevante valor social ou moral, o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão entre o irremediável sofrimento da vítima”.
Fazendo uma tradução da legislação aplicável à questão, aquele que auxiliar na prática de morte assistida ou eutanásia pode responder por crimes contra a vida, muito embora a pena possa ser reduzida, desde que a vítima efetivamente esteja acometida de doença terminal incurável, haja consentimento do paciente e motivação piedosa.
A primeira premissa que deve ser estabelecida, para uma melhor reflexão, é que ninguém pode ser privado de sua vida contra a própria vontade. A segunda premissa é a de que, no ordenamento jurídico brasileiro atual, a eutanásia, incluindo-se a modalidade de suicídio assistido, é crime.

Mas, ainda que a legislação diga que é crime, as repercussões social, moral e filosófica do tema são muito mais profundas do que uma simples análise da legislação que o conforma. Há, ainda, implicações religiosas que revelam a impopularidade desse assunto no Brasil.

Tabu

É preciso dizer que o suicídio, em nossa sociedade, permanece sendo um tabu, relegado à clandestinidade, com condenação moral da família do vitimado. A vida, na nossa sociedade, tem um valor universal social absoluto. A expressão “desligar os aparelhos”, quando se trata de paciente inconsciente e mantido vivo apenas por força de equipamentos, é mais aceita do que a morte assistida, solicitada por indivíduo consciente que toma, de forma espontânea, a decisão de não mais querer viver. Onde estaria a ilegitimidade, senão na religião, na decisão livre e consciente de um indivíduo de não querer viver de forma que considere indigna ou infeliz?

Afinal de contas, a vida pertence ao seu titular ou à sociedade?

A criminalização da eutanásia ou morte assistida leva à clandestinidade, à indignidade do assistido e à incriminação do assistente. Isso é um fato e um problema para o qual a Justiça não pode fechar os olhos. Implica dizer que os que se veem nessa triste circunstância devem ser obrigados a viver por absoluta obrigação, e não por direito. É como se estivessem violando um direito pertencente à sociedade, e não de seu próprio detentor.

O cinema contou, em 2010, outra história sobre eutanásia no filme “Você não conhece Jack”, com Al Pacino no papel de Jack Kevorkian, médico americano que ajudou mais de 100 pessoas a cometerem suicídio assistido, garantindo-lhes uma morte tranquila, sem dor e acompanhados de seus entes amados.

O tema é complexo, polêmico e sem respostas ou resoluções certas ou erradas. Há reflexões e a necessidade de se discuti-lo amplamente, numa tentativa honesta, como diria a minha avó, de “tirar esse elefante da sala”, ou seja, de jogar luz sobre uma discussão tão séria e complexa. Ramón Sampedro, no vídeo de seus últimos momentos, achou importante dizer que “viver é um direito e não uma obrigação, como foi pra mim”. Assim, para a reflexão deste domingo, proponho um pensamento: de quem é o direito de decidir o destino de nossas próprias vidas? Esse direto é meu ou do Estado?

Por Flávia Guth é advogada associada do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Advocacia
Fonte: metropoles

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