A cultura do estupro no Brasil e sua equivocada relação com a vitimologia - Por Leonardo Felix

goo.gl/FsqGNE | Nos últimos dias o instituto Datafolha divulgou pesquisa realizada com 3.625 pessoas entre os dias 1 e 5 de agosto. Nessa pesquisa 1 em cada 3 brasileiros (33,33% dos entrevistados) acreditam que a culpa pelo estupro seja da mulher, entre os homens tal pensamento violento é ainda maior, pois 42% deles dizem que mulheres que se dão ao respeito não são estupradas.

Ainda segundo a pesquisa, para 30% dos homens, a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada.

Esses dados apenas reforçam a inequívoca concepção da existência de uma cultura de estupro no país, pois nota-se claramente que grande parte da população está naturalizando comportamentos violentos.

O termo “cultura do estupro” vem sendo utilizado desde os anos 1970, sendo possível sua conceituação como um termo usado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de violência sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens.

Pela cultura do estupro as mulheres são vistas como como indivíduos inferiores e, muitas vezes, como objeto de desejo e de propriedade do homem, o que o autoriza a alimentar diversos tipos de violência física e psicológica, entre as quais o estupro.

Expressões como: “ela provocou”, “ela estava de saia curta”, “ela não deveria sair sozinha”, “ela não deveria estar na rua naquela hora”, “ela não deveria ter bebido” são comumente utilizadas para justificar a prática de crimes sexuais. Deste modo, é transferida a culpa pelo cometimento do crime para às pessoas mais frágeis desse círculo cultural de violência, quais sejam, as vítimas.

DA VITIMOLOGIA

O termo vítima possui origem no latim victimia e victus, que significa a pessoa ou animal sacrificado ou que se destinaria a um sacrifício.  Juridicamente, trata-se a vítima do sujeito passivo eventual, material, específico em cada crime, ou seja, é quem sofre a lesão do bem jurídico de quem é titular. No Direito Penal, a vítima é observada pela área da vitimologia, que analisa a vítima e a sua relação com o crime e com o criminoso.

A vitimologia tem por objetivo estudar o comportamento da vítima, buscando compreender se determinado comportamento gerou ou influenciou uma prática delitiva, além de analisar os efeitos do crime na pessoa da vítima. Gianpaolo Poggio Smanio e Humberto Barrionuevo Fabretti conceituam vitimologia como:

A vitimologia, portanto, estuda a vítima e suas relações com o autor do crime e com os sistemas sociais, tendo grande importância para a compreensão da estrutura e da intervenção das instâncias formais e informais de controle social, bem como para a formulação da política criminal adequada. (SMANIO, FABRETTI, 2016, p. 106).

As vítimas, conforme entendimento doutrinário, podem ser classificadas como vítima inocente (ou ideal), vítima menos culpada que o delinquente (ou ignorante), vítima tão culpada quanto o delinquente (ou provocadora), vítima mais culpada que o delinquente e vítima como única culpada.

a. Vítima inocente: Trata-se da vítima que não tem nenhuma participação no evento criminoso;

b. Vítima menos culpada que o delinquente: É a vítima que contribui indiretamente para o fato danoso;

c. Vítima tão culpada quanto o delinquente: Enquadra-se aquela que, sem ela, o crime não teria ocorrido;

d. Vítima mais culpada que o delinquente: São vítimas de crime privilegiado;

e. Vítima como única culpada: Trata-se da vítima que causou o delito, sem ela não teria existido aquele ato danoso.

A EQUIVOCADA RELAÇÃO ENTRE A CONTRIBUIÇÃO DA VÍTIMA NOS CRIMES SEXUAIS

Como supracitado a vítima provocadora é aquela considerada tão culpada quanto o delinquente, isto é, de forma deliberada ela contribui para que o evento criminoso ocorra.

Nas palavras de Neemias Prudente, a vítima provocadora “com seu comportamento, se autocoloca em risco” atuando de forma voluntária e de forma livremente arriscada. (PRUDENTE, Online, 2006).

Ainda nas palavras de Prudente, é possível afirmar que homem e mulher são predadores natos, com isso o comportamento da vítima possui grande influência no cometimento de crimes sexuais:

Concluiu-se no presente trabalho que o comportamento da vítima traz grande influência nos crimes sexuais. Desde os tempos bíblicos, já se notava o comportamento da vítima nos crimes sexuais. Com o passar dos tempos, a vítima foi trazendo maior influência para o acontecimento do crime. Nos dias atuais, a mulher vem provocando o homem, que é predador, não consegue se conter e acaba praticando algum tipo de abuso sexual. (PRUDENTE, Online, 2006).

No mesmo sentido de Prudente, Wesley Costalonga assevera que as vítimas de violência sexual refletem um comportamento vulgar, sensual, provocador e manipulador:

Geralmente, as vítimas de violência sexual são mulheres provocadoras inconscientes, porque se encontram num estado psíquico e comportamental convidativo, devido a fatores, internos e externos, que elas próprias ignoram, onde refletem um comportamento vulgar, sensual, provocador e manipulador, chamando todas as atenções para si, essas vítimas acabam tendo alguma inevitável participação na execução do crime. (COSTALONGA, Online)

Prudente, atribui aos seres humanos a qualidade (negativa) de predadores, todavia, ao se analisar a semântica da palavra é possível verificar que ela advém do latim, e diz respeito à animas irracionais que devoram uns aos outros por questão de sobrevivência.

Contudo, essa naturalização do comportamento violento fundamenta-se erroneamente na classificação da vitimologia e de forma totalmente equivocada induz à inversão da culpa nos crimes sexuais, uma vez que, do mesmo modo que não é possível culpar a vítima por possuir bens de alto valor e de alguma forma ser considerada um “alvo em potencial” dos crimes contra o patrimônio, também, a relação entre um crime com violência sexual e a figura da vítima provocadora se mostra contestável, pois o estupro é um crime abjeto, cometido pelo forte sobre o fraco, inaceitável em qualquer civilização e descabida qualquer classificação e culpabilização da vítima.

O problema da cultura do estupro não reside em conceitos criminológicos, mas sim em concepções sociais, é necessário que se modifique esse pensamento de naturalização do comportamento que considera a mulher como objeto do prazer desmedido e violento do homem. Homens e mulheres são livres para usarem as roupas que desejarem, frequentarem os lugares que tiverem interesse e possuem o direito de não sofrer qualquer tipo de violência sexual, seja ela física ou psicológica.

Notas e Referências:

Smanio, Gianpaolo Poggio. Introdução ao direito penal: criminologia, princípios e cidadania / Gianpaolo Poggio Smanio, Humberto Barrionuevo Fabretti. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2016.

MARINHO, Juliana Costa Tavares. A importância da análise do comportamento da vítima no direito penal. <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7113> Acesso em setembro/2016

PRUDENTE, Neemias Moretti. A contribuição das vítimas para os crimes sexuais. <http://www.conjur.com.br/2006-mar-05/contribuicao_vitimas_crimes_sexuais> Acesso em setembro/2016

COSTALONGA, Wesley. Vitimologia e crimes sexuais. <http://wesleycostalonga.jusbrasil.com.br/artigos/114665335/vitimologia-e-os-crimes-sexuais>. Acesso em setembro/2016

NAÇÕES UNIDAS. Por que falamos de cultura do estupro? <https://nacoesunidas.org/por-que-falamos-de-cultura-do-estupro/>. Acesso em setembro/2016.

GLOBO. Um em cada 3 brasileiros culpa mulher em casos de estupro, diz Datafolha. <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/09/um-em-cada-3-brasileiros-culpa-vitima-em-casos-de-estupro-diz-datafolha.html>. Acesso em setembro/2016.

Por Leonardo Martins Felix
Fonte: emporiododireito

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