Aplicação do princípio da consunção no crime de porte ilegal de armas - Por Gustavo dos Santos

goo.gl/cg5LpS | O crime de porte ilegal de arma de fogo está descrito nos artigos 14 e 16 da Lei n.º 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), a única diferença que há entre aludidos tipos penais é de que o primeiro é relativo ao uso de arma permitida e o segundo relativo ao uso de arma restrita:

"Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

(…)

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Como se vê os verbos descritos nos tipos penais em apreço são praticamente os mesmos, a diferença, repise-se, é somente em relação ao tipo do armamento. No entanto, ambos protegem o mesmo bem jurídico – segurança pública.

Feito essa premissa, vamos imaginar a seguinte situação: em uma blitz de rotina policiais militares se deparam com um indivíduo portando ilegalmente diversas armas em seu automóvel, tanto de uso permitido como de uso restrito, e, em razão disso, o agente foi preso em flagrante.

Encerrado os trâmites na Delegacia de Polícia os autos foram encaminhados ao Ministério Público e, nesta oportunidade, o Promotor de Justiça entendeu por bem denunciar o indivíduo pelos fatos subsumidos aos tipos penais acima ilustrados (arts. 14 e 16 da Lei n.º 10.826/03).

A acusação oferecida em desfavor do agente está correta? Analisando as poucas informações descritas no exemplo anteriormente mencionado qual seria a melhor tese defensiva?

A denúncia não está correta e a melhor tese defensiva seria a da aplicação do princípio da consunção, a fim de evitar o excesso de punição, isso porque todas as armas foram apreendidas durante a mesma situação fática.

O professor Cleber MASSON (2014, p. 136) ensina que de acordo com o princípio da consunção o fato mais amplo e grave consome, absorve os demais menos amplos e graves. Isso para que o indivíduo não seja responsabilizado pelos mesmos fatos mais de uma vez, o que destoaria da finalidade do Direito Penal.

Nota-se que a matéria em debate é de extrema objetividade. Isto é, como o crime previsto no art. 16 da referida Lei é mais grave (porte ilegal de arma de uso restrito: reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa), ele absorve o crime previsto no art. 14, pois este, por se tratar de armas de uso permitido, é menos grave.

Ademais, importante consignar que o princípio da consunção (ou absorção) pode ser aplicado ainda que os tipos penais protejam bens jurídicos distintos, conforme se verifica por meio das lições do Cezar Roberto BITENCOURT (2013. p. 257).

"Não convence o argumento de que é impossível a absorção quando se tratar de bens jurídicos distintos. A prosperar tal argumento, jamais se poderia, por exemplo, falar em absorção nos crimes contra o sistema financeiro (Lei n. 7.492/86), na medida em que todos eles possuem uma objetividade jurídica específica. (…)

No conhecido enunciado da Súmula 17 do STJ, convém que se destaque, reconheceu-se que o estelionato pode absorver a falsificação de documento. Registra-se, por sua pertinência, que a pena do art. 297 é de 2 a 6 anos de reclusão, ao passo que a pena do art. 171 é de 1 a 5 anos. Não se questionou, contudo, que tal circunstância impediria a absorção, mantendo-se em plena vigência a referida súmula.

Portanto, mesmo que os bens jurídicos tutelados sejam diversos o princípio da consunção deve ser aplicado, a fim de que o agente não seja responsabilizado duas vezes pelos mesmos fatos e condutas – non bis in idem.

 Importante registrar, ainda, a título de esclarecimento, que o princípio da consunção também é utilizado em casos em que um crime é praticado a fim de alcançar outro crime. Por exemplo: uso de documento falso para a prática do crime de estelionato. Nesse caso o agente deve ser responsabilizado tão somente pelo crime de estelionato, uma vez que, por meio do princípio da consunção, o crime meio (uso de documento falso) é absorvido pelo crime fim (estelionato).

Por fim, seguem precedentes bastante didáticos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que ilustram a aplicação do princípio da consunção em ações penais em que o agente foi denunciado por crimes previstos no Estatuto do Desarmamento:

  • APL n.º 0009459-23.2015.8.26.0609, TJSP, Rel. Des. Cláudia Lucia Fonseca Fanucchi, DJe 12/07/2017:

"Assiste razão à Defesa, mostrando-se de rigor a aplicação do princípio da consunção com relação aos delitos tipificados nos artigos 12, 14, caput, e 16, parágrafo único, inciso IV, todos da Lei nº 10.826/03, de sorte a considerar os dois primeiros (posse e porte ilegal de arma, munições e acessórios de uso permitido) absorvidos pelo delito mais grave (posse de arma com numeração suprimida e posse de munição de uso restrito), porquanto a apreensão dos armamentos, das munições e do acessório sucedeu-se no mesmo contexto fático, caracterizando, assim, crime único.

  • APL n.º 0059831-38.2014.8.26.0050, TJSP, Rel. Des. Tolozo Neto, DJe 06/12/2017

"Com efeito, havendo na hipótese único contexto fático, deve ser aplicado o princípio da consunção no que diz respeito aos crimes de porte ilegal de arma de fogo com numeração suprimida e disparo de arma de fogo, ambas infrações penais pelo qual o apelado foi condenado. Inobstante, tratando-se de porte de arma de fogo que se equipara à de uso restrito pelo fato de sua numeração ter sido raspada, em consonância com o art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei nº 10.826/03, crime cuja pena é mais grave do que a prevista para o disparo de arma de fogo, delito previsto no art. 15 do mesmo Diploma Legal, o critério quantitativo do aludido princípio da consunção, derivado dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, demanda que o disparo seja tomado como post factum impunível em relação ao porte, prevalecendo este a absorver o primeiro.

Importante, porém, distinguir a hipótese dos presentes autos daquela em que a arma de fogo é de uso permitido. Cominada ao delito previsto no art. 14 da Lei nº 10.826/03 pena idêntica àquela adstrita ao art. 15 do mencionado Diploma Legal, o crime fim de disparo de arma de fogo resta por absorver o crime meio de porte, desde que, frise-se, não haja o estabelecimento de contextos fáticos diversos para cada conduta, ou seja, o porte e o disparo ocorram em uma mesma conjuntura.

  • APL n.º 0010632-52.2015.8.26.0037, TJSP, Rel. Des. Gilberto Ferreira da Cruz, DJe 17/11/2017

"Entretanto, embora comprovado o fato objetivo descrito no tipo penal do artigo 14 da Lei nº 10.826/03, é inconteste a sua absorção pelo crime do artigo 15 da referida Lei especial, pois os dois delitos atingem o mesmo bem juridicamente tutelado, qual seja, a incolumidade pública pertencente ao mesmo sujeito passivo: coletividade. Assim, o delito de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido praticado por (…) fica absorvido pelo crime de disparo de arma de fogo. Satisfeitas as exigências do princípio da consunção no conflito aparente de normas. Isso em razão daquele ser meio ou instrumento para a perpetração deste último crime de maior gravidade.

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REFERÊNCIAS

MASSON, Cleber. Direito Penal Parte Geral Esquematizado. São Paulo: Método 2014.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 19ª ed. São Paulo, Saraiva, 2013.

Gustavo dos Santos Gasparoto 
Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Pós-Graduando em Ciências Criminais. Advogado criminalista.
Fonte: Jus Brasil

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