'Eu chamo de business': como é a compra e a venda irregular de TCCs

Via @portalg1 | Quando se busca “TCC” na internet, os primeiros resultados não são dicas para um bom trabalho de conclusão de curso. Exibem, na verdade, anúncios de sites que, por alguns milhares de reais, vendem monografias prontas.

Para explicar como funcionam os esquemas de negociação, o g1 conversou tanto com quem compra quanto com quem produz estes textos, e cadastrou-se (sem se identificar) em três plataformas on-line (leia mais abaixo).

Há um consenso entre os especialistas: pagar por um TCC e mentir sobre a autoria dele é uma prática irregular passível de punições administrativas e disciplinares, como a expulsão da universidade.

"Que é uma fraude, não restam dúvidas", explica Fernanda Prates, professora do curso de direito na FGV-Rio.

O processo envolve alguns milhares de reais, dores de cabeça com prazos apertados, versões que "parecem trabalho de quinta série", sensação de culpa por forjar um documento e eufemismos para justificar os próprios atos.

"Minha filha diz que é crime. Eu chamo de business [negócios, em inglês]", diz uma das vendedoras de TCCs entrevistadas para esta reportagem.

Tabelas de preço, leilões e TCC de engenharia feito por advogado

A “Compre TCC”, por exemplo, enviou por Whatsapp uma tabela de preços para um trabalho final de enfermagem: se o aluno não se importar com a formação universitária de quem fará a pesquisa por ele, pode pagar R$ 1 mil por 50 páginas. Mas, se preferir um pacote premium, com texto escrito por um doutor e apresentação de Power Point, o valor sobe para R$ 3 mil.

Tabela de preços cobrados para um TCC terceirizado — Foto: Reprodução

No site “Studybay”, o funcionamento é chamado de leilão: o estudante cadastra sua encomenda e aguarda os lances.

Lance de leilão para um artigo de 30 páginas — Foto: Reprodução

A repórter registrou que precisa, até julho, entregar um TCC de engenharia civil.

Em quatro minutos, dez colaboradores ergueram as mãos virtualmente. Um deles ofereceu seu projeto e cobrou R$ 2.287, considerando que o prazo de entrega seria de menos de 60 dias. “Já fiz mais de 1.180 trabalhos aqui na plataforma, inclusive teses de doutorado”, disse, no chat.

Outra, identificando-se como advogada, garantiu que seria capaz de escrever sobre um assunto de engenharia civil, mesmo sem ter formação para isso. “Se não tiver contas e for só teórico, dá certo”, afirmou.

E se for golpe? Existe até processo correndo na Justiça contra a Studybay, por exemplo – uma engenheira, que nada tinha a ver com a empresa, disse que encontrou seu TCC sendo vendido na plataforma (sem qualquer crédito ou consentimento).

Bom, caso o aluno se sinta inseguro, queira alguma referência e decida pedir ao “especialista” o contato de alguém que já tenha encomendado um TCC com ele, vai receber a seguinte mensagem:

При попытке обмена контактной информацией учетные записи пользователей могут быть заблокированы.

Sim, a reportagem recebeu uma mensagem em russo dizendo que, “ao tentar trocar informações de contato, as contas de usuário podem ser bloqueadas”.

Quando procuradas pelo g1 formalmente, as empresas citadas acima não haviam se pronunciado até a última atualização deste texto.

‘Parecia um trabalho de 5ª série’

Mariana* contratou a TCC Maker para fazer seu trabalho de conclusão de curso de direito.

“Foi por causa da minha rotina, que é muito corrida”, afirma.

Mas o objetivo de ganhar tempo foi por água abaixo: a empresa não respeitou o prazo de entrega estabelecido por Mariana e ainda enviou uma monografia de baixíssima qualidade, conta a estudante.

“Era um trabalho péssimo, que não cumpria as exigências da faculdade, não estava dentro das normas solicitadas e não tinha credibilidade, porque as conclusões finais partiam de uma premissa pessoal”, diz. “Foram diversas falhas. Parecia um trabalho de 5ª série.”

Depois de entrar em contato com a TCC Maker e pedir as correções, Mariana ouviu que “precisaria pagar uma taxa extra”.

“Agora, estou fazendo o trabalho por conta própria”, relata. Ela tem até 6 de junho para escrever a pesquisa inteira.

Ao g1, a TCC Maker disse, por e-mail, que tem um setor de qualidade que se dirige diretamente aos clientes para falar do andamento dos trabalhos encomendados. A empresa não se pronunciou a respeito da legalidade de suas atividades e das críticas feitas por Mariana.

O atendimento foi mais rápido e completo quando a repórter, sem se identificar, conversou por Whatsapp com uma das funcionárias e demonstrou interesse em comprar um TCC para o curso de veterinária. Foram cobrados R$ 1.120 por um trabalho com “revisões, ABNT e referências, feito por um profissional especialista na área”.

Mensagem enviada por empresa que vende TCCs — Foto: Reprodução

'Ajuda no fim do mês', diz professora da rede pública que faz TCCs

Não são só as empresas que vendem TCCs prontos – há também profissionais que, de forma independente, escrevem a pesquisa inteira para que ela seja apresentada por um estudante.

Joana* – que chama de "business" o que a filha define como crime – recebe, em média, uma encomenda por mês. Ela cobra de R$ 400 a R$ 500 para cada trabalho de conclusão de curso.

“Como sou professora da rede pública, sei que ninguém vai pagar mais do que isso. Ainda assim, ajuda no fim do mês. E prefiro trabalhar por minha conta, porque essas empresas são como cooperativas: vendem os trabalhos a preços altos, mas quem faz está sujeito a uma remuneração baixa e a muita cobrança.”

Formada em letras, Joana já redigiu TCCs de educação física, educação especial e direito, por exemplo.

“Em geral, pergunto se a pessoa tem algum autor predileto que queira que eu cite no trabalho. Mas normalmente a resposta é: ‘pode escolher aí’”, conta. “É gente que não tem tempo para pensar na pesquisa mesmo, porque trabalha o dia inteiro.”

‘Tenho vergonha’

A advogada Flávia* contratou os serviços de Joana para o TCC da pós-graduação em direito em uma das universidades mais famosas do país. Pagou R$ 450, foi aprovada e obteve o título acadêmico.

“Não me preocupei de a Joana não ser formada na área, porque confio nela. Passei o sumário do que eu gostaria que fosse feito e revisei antes de entregar”, relata.

“Mas foi muito estranho tomar essa decisão. Quando as pessoas perguntam: ‘e aí, terminou o curso?’, é esquisito dizer que sim, porque não fui eu que finalizei.”

Flávia diz que não terceirizaria um trabalho acadêmico novamente.

“Quero mudar de área de atuação e fazer os próximos TCCs corretamente. Não contei a ninguém, nem à minha filha, que paguei para fazerem [a pesquisa] para mim. Sendo bem sincera, tenho vergonha.”

'Dei uma lida', diz comprador

“Eu já tinha duas pós-graduações quando decidi fazer uma segunda faculdade em geografia. Não achei que o TCC fosse me acrescentar muita coisa. Era só uma forma de me prender e me fazer pagar mais boletos [de mensalidades, se não terminasse a tempo]”, conta o professor João*.

Por este raciocínio, ele optou por comprar o trabalho acadêmico.

“Deixei que a pessoa escolhesse o tema por mim. Acho que ela fez sobre imigração… imigração não sei de quê. Não lembro direito. Mas dei uma lida, ficou sensacional.”

Questionado se viveu algum conflito moral em pagar pelo TCC, João diz que não. “Foi uma venda consentida. Não tive peso na consciência.”

Afinal, é crime?

Como já mencionado no início da reportagem, comprar um TCC e mentir sobre sua autoria é fraude.

"É uma prática ilícita", diz Gustavo Monaco, presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP.

Há também prejuízos pedagógicos, como explica Luciane Barbosa, docente da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp):

“Quando o estudante paga para fazerem o trabalho dele, está perdendo a oportunidade de se aprofundar em um assunto e de refletir sobre uma temática importante para a sua formação."

Mas, se é crime ou não, vai depender da interpretação do juiz.

Exemplo de mensagem enviada por empresa que vende TCCs — Foto: Reprodução

Há quem veja como estelionato, por exemplo, já que, a partir do TCC falso, o aluno obtém uma vantagem para conseguir o diploma. Outra acusação possível é a de plágio, se quem vendeu o trabalho copiar trechos de outros autores, sem citá-los devidamente.

Veja os argumentos de dois advogados:

‘Grande risco de ser visto como crime’

Gabriel Loretto Lochagin, presidente da Comissão de Graduação da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - USP, afirma que vender ou comprar o trabalho pode se encaixar no artigo 307 do Código Penal:

“Art. 307. Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem.”

Uma das participantes do 'leilão' se oferece para fazer o TCC — Foto: Reprodução

Ele justifica:

“O aluno não informa no TCC que o texto foi escrito por outra pessoa”, explica. “A partir do momento em que isso é omitido, pode gerar a interpretação [jurídica] de que houve falsificação de identidade. É um risco grande de ser visto como crime.”

A pena pode ser de multa ou de três meses a um ano de detenção.

“A reclusão não costuma ser aplicada, porque normalmente o aluno é réu primário. Ainda assim, se houver condenação, ela vai ficar no histórico da pessoa. Para quem está estudando direito, é algo gravíssimo, porque tira a possibilidade de se inscrever em concursos públicos. A carteirinha da OAB também pode ser cassada.”

‘Antiético, mas não é crime’

“É extremamente antiético, mas nem todas as ações antiéticas são ferimentos ao Código Penal”, diz Prates, da FGV-Rio.

Na opinião dela, não há crime:

“Em um primeiro momento, poderíamos pensar em falsidade ideológica, mas aí precisaria analisar a relevância do documento. Se você assina uma receita de bolo que não é sua, não há fins penais. Mas, se assinar um atestado médico falso ou um diploma, sim. Eu acho que seria forçado colocar o TCC para ser discutido na Justiça”, afirma.

“Mas isso não desfaz a urgência de resolver o problema. A faculdade deve detectar quem comprou o trabalho e nem chegar a diplomar a pessoa, em vez de diplomá-la e depois tentar a responsabilização penal.”

Crime ou não, é difícil ser descoberto

O aluno pode demonstrar desconhecimento do próprio trabalho na apresentação. Ou ter uma conduta relapsa ao longo da graduação, mas, no trabalho final, escrever algo (estranhamente) excepcional.

Os professores chegam a desconfiar, mas como irão provar que o estudante comprou o TCC? Se não houver plágio (que atualmente é detectado por softwares especializados), a instituição tem poucos instrumentos para denunciar a fraude.

"Já reprovei trabalhos porque o aluno demonstrou total desconhecimento do que apresentou à banca avaliadora. Mas não posso acusá-lo de ter comprado o TCC, porque estaria imputando um crime a ele sem ter provas", diz Monaco.

"Ele pode justificar que estava nervoso, por exemplo. Ou seja: as universidades sabem que isso [comercialização de trabalhos] acontece, mas não há como comprovar."

É assim que a indústria da terceirização de TCCs se mantém.

O g1 entrou em contato com as dez instituições de ensino superior com mais matriculados em cursos presenciais, e nenhuma comentou o assunto. Também perguntou ao Ministério da Educação (MEC), responsável pelo controle de qualidade das universidades, se a pasta está atenta à prática de venda de trabalhos acadêmicos, mas não recebeu resposta até a última atualização desta matéria.

E as empresas? Como continuam funcionando?

Segundo Lochagin, elas deveriam responder por falsa identidade ou auxílio a fraudes, mas conseguem escapar ao se definirem como prestadoras de “consultorias acadêmicas”.

“Se o que elas fizessem fosse realmente só um auxílio à pesquisa, seria até interessante. A questão é que o contrato é para fornecer o trabalho pronto.”

Monaco, da USP, diz que a fiscalização poderia ser feita pelo Ministério Público ou por órgãos de defesa do consumidor. "Está se ofertando um produto que abre espaço para falsidade ideológica", explica.

Até a última atualização desta reportagem, os MPs de São Paulo e do Rio de Janeiro ainda não haviam localizado procedimentos contra as empresas mencionadas.

* Os nomes reais foram trocados por fictícios a pedido dos entrevistados.

Fonte: g1

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