Adequação social: Trajetória da Teoria Finalista na Dogmática Penal

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Por @wilsonalj | Aos juristas Ludwig Von Bar e Max Ernst Mayer, devem-se às concepções embrionárias para a criação do conceito de adequação social. Von Bar, em 1871, ao abordar sobre o princípio da causalidade, asseverou que o direito deveria ser utilizado em questões danosas contrárias às regras de vida. Neste diapasão, o autor alemão formulou as bases da teoria da causalidade adequada, a qual, sob o prisma da imputação do resultado à ação, atribui ao autor do dano os efeitos previsíveis e comuns acarretados pelo seu ato, funcionando apenas em condutas destoantes das regras da vida, devendo, tais regras da vida, estarem assentadas fora do âmbito de persecução penal.

Origens e Desenvolvimento da Teoria da Adequação Social

Os estudos de Von Bar foram relevantes ao ponto de sua teoria ser carreada para o direito penal pelo alemão Johannes Von Kries, em 1886, o qual elaborou a teoria da causalidade adequada, entendendo que, no âmbito jurídico-penal, a conduta deveria trazer uma aptidão para gerar o resultado típico, com base em uma previsibilidade objetiva de cuidado, demonstrando como uma teoria da imputação. Neste panorama, estipulou-se que o juízo de adequação deveria ser examinado no momento da ação, mas em uma prognose posterior objetiva, percebida como o momento em que o magistrado possa firmar-se, de maneira objetiva, como um espectador no processo, portando as percepções do autor e suportando julgar antes do fato, sendo, tal premissa, utilizada nos estudos do jurista alemão Claus Roxin para, além de aperfeiçoar a concepção de adequação, estruturar sua teoria da imputação objetiva, contudo, mesmo após grandes avanços, a teoria da causalidade adequada, por possuir acepções contingentes, não conseguia demarcar o que seria proibido, prejudicando os paradigmas para uma ponderação do que seria adequado.

Convergência com Outras Teorias Penais

A teoria criada por Von Bar traz diversos pontos convergentes com a teoria da adequação social, sobretudo, quanto ao aspecto diretamente proporcional entre a relevância social da conduta e o estado de complacência do direito com as máculas acarretadas aos bens jurídicos, demonstrando uma latente redução da relevância do desvalor de resultado em detrimento da importância social da ação. Desta forma, Von Bar, aproximando-se das acepções de Welzel e Mayer, leciona que a vida em sociedade exige equilíbrio entre liberdades e restrições, devendo, o indivíduo, em determinados casos, suportar interferências danosas de terceiros, citando, inclusive, o exemplo em que o proprietário de um imóvel acende a lareira e, mesmo sendo diligente, por conta de uma ventania, resquícios do fogo acarretam um incêndio na casa vizinha. Neste caso, recorrendo ao critério diligens pater famílias, o qual provém do direito romano e ligado com o conceito do direito inglês de homem razoável, entende não ser uma situação abarcada pelo direito penal.

Críticas ao Positivismo e Avanços do Finalismo

Max Ernst Mayer, mesmo não acatando a teoria da adequação social, foi um grande contribuinte para a elaboração da teoria welzeliana, tendo em vista que seus ideais visavam a superação do causalismo. Sob tal perspectiva, Mayer elaborou o conceito das normas de cultura, as quais sobrepujaram a premissa causalista de ilícito, canalizado no desvalor do resultado, direcionando-o para o desvalor da conduta e foram criadas por este autor alemão e baseadas nos estudos de Binding, demonstraram ter uma óbvia vertente positivista, buscando o cerne da conduta, levando a uma quebra das concepções causais.

Evolução do Pensamento de Welzel

Em sua pesquisa, Hans Welzel critica o positivismo puro, além de determinados estudos feitos por Mayer, por entender que o âmbito penal não poderia ser baseado apenas na lei. O autor alemão toma como ponto de partida para as suas teses finalistas o entendimento de que os alicerces lógico-objetivos seriam permanentes, antecedendo e não podendo ser alterados pelo direito, fazendo duras críticas ao normativismo neokantiano.

Em um primeiro momento, Welzel faz duras críticas ao conceito unitário de ação, o qual estava baseado nos pensamentos de Binding e Hegel, alegando que, à época, não existia a doutrina da ação. Assim, Welzel tentou superar a doutrina usual da época por um conceito de ação baseado no finalismo: o conceito final de ação. É de se notar que a concepção de adequação social welzeliana é da mesma época da estruturação do sistema finalista, sendo aquela, em muitos aspectos, servido de critério basilar para as acepções do finalismo.

Neste contexto, o autor alemão altera algumas vezes sua percepção acerca da adequação social, dentre as quais três se destacam. Em um primeiro momento, quis se distanciar dos ideais de Beling, o qual indagou que a efetiva dimensão do tipo penal seria meramente descritiva, portando-se de maneira neutra. Distanciando destas percepções causalistas, Welzel pretendeu dar à adequação social um enfoque de valoração social prévia, indo além de uma mera valoração ex post da ação censurada. Em sua obra Estudos sobre o sistema de Direito Penal, publicada em 1939, o autor finalista entendia que todas as condutas inseridas em um panorama histórico-cultural, não estariam introduzidas no injusto penal, sendo, tais condutas, adequadas e não desautorizadas socialmente. Além disto, Welzel traz diversas críticas sobre a acepção de bem jurídico existencialmente tutelado, visto que, sob tal perspectiva, os bens jurídicos serviriam como mera contemplação, como petrechos de museu, o que seria destoante com a acepção social do Direito, a qual entende os bens jurídicos atrelados ao âmbito da realidade social. Neste panorama, a ação estaria para o injusto sob uma perspectiva funcional, enxerta no âmbito histórico-cultural de determinadas sociedades, devendo ser adequada socialmente.

Sob o fundamento de valoração social da ação para a adequação social, Welzel se pautou nos ensinamentos weberianos, alegando que determinados delitos deveriam ser interpretados com base na intenção e nos motivos do autor. Além disto, os estudos welzelianos restaram-se associados à obra de Friedrich Albert Lange, o qual elaborou os conceitos de verdadeira autoria e verdadeira comparticipação, entendendo que a vontade do autor do fato seria uma vontade efetiva ligada ao delito cometido, e não apenas uma vontade genérica, demonstrando uma conduta finalisticamente ligada ao resultado. A partir deste momento, Welzel elabora o conceito final de ação, sendo entendido como atividade dirigida a um fim, consubstanciando a ideia de que o homem poderia, graças aos seus conhecimentos, prever as consequências, dentro de certos limites, de suas condutas, direcionando suas atividades a determinados fins, baseando-se em um aspecto ontológico e entendendo ser o desvalor do resultado cego.

Com a modificação do Código Penal alemão, em 1935, houve uma instabilidade nas acepções do Direito Penal, culminando na derrocada do princípio da legalidade, o que foi sobreposto por uma percepção de que a legislação deveria ser baseada em ideias supralegais, imbricadas pelas concepções do nacional-socialismo, sendo o conceito de povo e seus costumes tidos como seus parâmetros. A ideia de consciência social, tida como uma das essências de uma nova interpretação da tipicidade, demonstrou-se ter diversos pontos em comum com a primeira fase das compreensões de Welzel. Essa linha de pensamento percebeu o tipo delitivo como um paradigma de conduta não permitida, o que corroborou para o entendimento de que, com base na estruturação de uma anuência social e adequada, condutas, antes tidas por criminosas, reverter-se-iam em condutas plenamente lícitas, não podendo, tais condutas, serem valoradas sob critérios formais-individuais.

Desta forma, a sociedade teria duas perspectivas: a funcional e a normativa. Quanto à perspectiva funcional, os bens jurídicos estariam inseridos na sociedade, sofrendo os efeitos de sua influência. Já no critério normativo, a sociedade iria valorar os fatos ocorridos em seu âmbito. Pertencente a esta segunda perspectiva, a adequação social consistiria em uma regra valorativo-principiológica, sendo mutável e visando um ponto de equilíbrio ético-social em um momento histórico de determinada comunidade.

Em 1939, Welzel traz estudos alegando que as ações adequadas socialmente, tanto em épocas de guerra quanto em épocas de paz, ainda que causem lesão a determinados bens jurídicos penalmente relevantes, não devem ser percebidas como ações típicas, o que, para alguns doutrinadores, demonstrou-se como uma forma de justificação para as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. Além disto, assim como o jurista alemão Edmund Mezger, Welzel adotava o entendimento de que a tipicidade seria ratio essendi da ilicitude, sendo a junção entre a tipicidade e antijuridicidade denominada de injusto penal, devendo as condutas adequadas socialmente, estruturadas em critérios ético-sociais, ainda que acarretassem quaisquer danos aos bens jurídicos penalmente tutelados, não deveriam culminar no injusto penal. Welzel ainda dissertou sobre uma forma especial de adequação: o risco permitido, podendo ser observado tão somente no desvalor da ação, e não no desvalor do resultado, sendo diferenciado das diversas ações socialmente adequadas apenas pelo grau de exposição de risco de lesão ao bem jurídico.

Neste panorama, o jurista alemão interpreta os tipos penais como sendo tipificações de condutas antijurídicas e, para constituir o injusto penal, deve-se primeiro passar pela análise da conduta sob uma perspectiva da adequação social, necessitando que os componentes do tipo, no caso de superação da análise da conduta pela adequação social, sejam interpretados sob o prisma da realidade social. Assim, a adequação social, ao extirpar da literalidade dos tipos penais os processos vitais, que, sob uma perspectiva substancial, não devem ser subsumidos àqueles, é o que torna admissível o tipo como tipificação do injusto merecedor de sanção penal. Tal percepção fundamentou-se no afastamento do sistema causal-naturalista, tendo em vista que, nos estudos welzelianos, as concepções de ação e bem jurídico deste sistema seriam incompatíveis com o Direito Penal, visto que, para os causalistas, o bens jurídicos, em seus aspectos primários, seriam entendidos como o absentismo de quaisquer lesões, de maneira que apenas os crimes podem gerar danos aos bens jurídicos, suscitando a ideia estática de que os delitos podem ser produzidos pelo simples dano superficial aos bens jurídicos penalmente tutelados, entendendo Welzel que tal concepção iria de encontro aos ideais socioculturais da dogmática penal.

Welzel entendia os delitos dolosos como ações direcionadas pelo ânimo avaliativo do autor do fato. Em contrapartida, entendeu a ação negligente como algo evitável, além de tentar inserir um momento final a este tipo de ação, contudo, não obteve êxito, tendo em vista que os delitos negligentes são “não finais”. Ainda que divergindo dos ideais de Günther Jakobs, Welzel, nesta primeira fase de pensamento sobre a adequação social, entende a ação penal como um acontecimento socialmente relevante, sendo este conectado à vontade do autor do ilícito. Desta forma, a estruturação unitária de ilícito é preservada com base na valoração social da ação, a qual, segundo a doutrina welzeliana, admitiria a diferenciação entre algo socialmente relevante ou não para o direito penal, demonstrando ser uma valoração objetiva. Nesta percepção welzeliana, a valoração social da ação é dominante e, apenas em um segundo momento, quando a conduta demonstra ser socialmente imprópria, ocorre a análise subjetiva ou finalística do fato. Assim, o autor do fato guardaria uma forte afinidade com os elementos descritivos do tipo, os quais seriam entendidos como, em regra, normativos, sendo perceptível que a adequação social estaria vinculada à tipicidade e à ilicitude.

Após superar a constatação de que a adequação social seria uma indagação do tipo penal, trazendo uma indistinção entre o tipo e as justificantes do ilícito e gerando uma ideia de que ambas parecem perder suas autonomias materiais para serem abrangidas pelo pensamento de globalidade, Welzel adota o posicionamento de que a adequação social seria uma problemática da antijuridicidade, visando estabelecer uma real autonomia entre a tipicidade e a justificação. A mutação em seu pensamento tornou-se base para a sua segunda tese: a causa de justificação consuetudinária, a qual considerava a conduta socialmente adequada como típica, contudo, sendo plenamente justificada, como forma de se distanciar da teoria dos elementos negativos do tipo, a qual utilizou-se dos estudos da adequação social como método de valoração social da ação. Para o autor alemão, a adequação social, como uma forma tão somente justificativa, estaria embasada sob um critério de censura da utilização de ameaça ou força. Tal mudança acarreta grandes repercussões nos estudos dos ilícitos penais, a exemplo do declínio dos tipos legais dos ilícitos penais, os quais são modificados para serem apenas definições de condutas.

A segunda fase do pensamento welzeliano de adequação social tem seu alvorecer a partir da 2ª edição de sua obra, qual seja, o Novo Sistema de Direito Penal, aproximando sua teoria da estruturação causalista de Ernst von Beling sobre o tipo, entendendo as condutas adequadas socialmente como típicas, contudo, plenamente justificadas, tendo, tal percepção, sido acarretada através da elaboração da teoria dos elementos negativos do tipo, criada por pelo jurista alemão Adolf Merkel, a qual entendia que a tipicidade e a antijuridicidade formavam um único elemento e, pelo fato do tipo ser uma simples descrição da conduta, as justificantes penais seriam percebidas como componentes negativos do tipo do injusto penal.

Destarte, o autor alemão ao reestruturar sua interpretação acerca dos tipos penais, alegando que o tipo seria o injusto penal entendido com base em acepções típicas, englobando, tal injusto, as condutas externas aos ideais morais de vida social ativa. Assim, a percepção do injusto deverá, necessariamente, ser interpretada com fundamento nestes ideais morais. Desta maneira, as condutas inseridas nas acepções de âmbito social, ainda que possam ser enquadradas expressamente em um tipo específico, jamais serão consideradas infrações penais, pois são adequadas socialmente, explicitando, o autor alemão, que são adequadas socialmente quaisquer ações integradas ao âmbito de ordens ético-sociais da vida social, convencionadas através da história, a exemplo de um conselho de um sobrinho ao seu tio, para que este viaje de trem e sofra um acidente, visando ficar com sua herança, visto que, ainda que ocorra o sinistro e a morte do tio, a conduta será adequada socialmente, pois o sobrinho não empreendeu objetivamente nenhuma conduta ilícita de adequação típica.

Desta forma, o autor alemão posiciona a adequação social entre a atipicidade ou irrelevância da conduta e a justificação propriamente dita (cláusula geral), adotando um critério misto na abordagem em relação aos ilícitos dolosos e culposos. Nos crimes nos ilícitos dolosos, seria uma causa de justificação consuetudinária. Já nos crimes culposos, a adequação social serviria como critério de valoração global do comportamento, no qual o perigo de dano socialmente adequado é extinto dos tipos penais dos crimes culposos desde o início, ainda que acarretem uma lesão aos bens jurídicos.

Em 1960, o jurista alemão Friedrich Schaffstein trouxe, em suas análises, diversas críticas sobre a concepção de adequação social, sobretudo, no que tange à percepção de Welzel de que esta teoria seria uma causa de justificação. Para o autor da Escola de Kiev, a adequação social de enquadraria como uma causa de exclusão da tipicidade, alegando que a mudança de pensamento welzeliana sobre a adequação social, de um método de valoração da ação para uma causa de justificação consuetudinária, acarretou um retorno a concepção de ilicitude de Beling. Straffstein, em paralelo às ponderações feitas ao sistema welzeliano, também se contrapõe às interpretações feitas por Hans Joachim Hirsch acerca da teoria dos elementos negativos do tipo. Neste panorama, Straffstein entendeu a adequação social, de maneira dogmática, como uma causa de justificação, contudo, para chegar a tal percepção seria necessário considerá-la como um componente negativo do tipo, o que faria a adequação social centralizar-se entre a atipicidade e a justificação.

Já um 1961, Ulrich Klug trouxe ponderações acerca da distinção entre a adequação social e a congruência social, entendendo que aquela seria um critério de justificação consuetudinária, baseada em uma ótica ético-social que comanda o viver em comunidade, contudo, para Klug, tal percepção traria diversos argumentos falaciosos, entendendo que a adequação social deveria ser considerada uma premissa suprapositiva. Desta forma, a adequação social abordaria sobre um risco permitido e a congruência social abordaria sobre um risco necessário, entendendo aquela como um princípio geral de justificação e esta, um princípio geral de exclusão da ilicitude. Assim, com base na teoria dos elementos negativos do tipo, Klug diferenciou a adequação em duas vertentes: a adequação como excludente do tipo e como uma justificante, entendendo a adequação como causa de justificação pertinente apenas para elucidar os entreveros da teoria de ponderação de bens, pertinente ao direito consuetudinário.

Neste panorama, Hans Joachim Hirsch entende que as contribuições trazidas por Klug, ainda que tivesse algumas imprecisões, foi de grande valia para entender a adequação social como pertencente ao tipo, e não uma causa de justificação, corroborando na mudança de pensamento welzeiana para a terceira fase da adequação social.

Após seu segundo conceito sobre adequação social sofrer críticas de diversos autores, a exemplo de Friedrich Schaffstein, Ulrich Klug e Hans Joachim Hirsch, reformulou sua teoria, surgindo sua terceira linha de pensamento: a adequação social como critério de interpretação literal do tipo. Hans Welzel voltou a considerar a adequação social como critério excludente de tipicidade, contudo, extirpou de sua tese os fundamentos sobre a valoração ético-social da ação, distinguindo a adequação social das causas de justificação, sendo ambas consideradas liberdades, contudo, as justificantes seriam consideradas uma autorização para a realização de ações socialmente inadequadas, sendo estas típicas.

Assim, as justificantes só poderão ser utilizadas após o reconhecimento de uma conduta socialmente inadequada. A partir de sua terceira linha de pensamento, Welzel considera a teoria da adequação social como um critério imperiosamente hermenêutico, sendo um limitador do alcance do tipo, não se revelando uma teoria integralmente aperfeiçoada.

Neste panorama, em consonância com os estudos de Hans Joachim Hirsch, mesmo entendendo a adequação social como causa excludente da tipicidade, Welzel não conseguiu afastar completamente a ideia de valoração global, preceituada em sua primeira fase da adequação social, tendo em vista que alguns fatos não conseguiam ser sanados apenas por critério interpretativo. Assim, faz-se imperioso entender que a percepção de valoração global welzeliana da ação típica, ainda que abarcasse os pensamentos de Beling, foi bastante inovadora para a época, contudo, tal entendimento demonstra-se lacunoso pela fato da ação, ao ser valorada sob uma aspecto social, estando no âmbito externo e anterior ao tipo, para, a partir de tal aferição, entrelaçar o tipo legal do delito e esta supracitada ação, não perfaz Welzel, pelo menos, na sua primeira linha de pensamento, por se empregar sua concepção externa ao tipo, visto que, para o direito penal, apenas condutas valoradas como típicas seriam pertinentes. Sob tal perspectiva, Faria entende que a concepção social de ação deve ser permutada pela concepção de ação social típica, consistindo na ideia de que o “pensamento global” consubstanciou-se quando o legislador quis fixar ao nível do tipo legal do delito uma percepção de ilicitude a que deu uma nomenclatura e propósito específico, a exemplo do homicídio e do furto. Assim, a aferição social da lesão só terá relevância para perceber se a conduta poderá ou não ser tida como tipicamente relevante.

Sob o aspecto ontológico-normativo, a adequação social não responde qual seria o grau de probabilidade para que uma causação seja considerada penalmente relevante, o que visivelmente torna dificultosa sua aplicação, gerando uma dissonância doutrinária e, consequentemente, sendo objeto de diversas mutações epistemológicas.

Autores como Hirsch, Welzel e Roxin propuseram exemplos para a incidência da teoria da adequação social. Em inúmeros momentos, até mesmo a jurisprudência de diversos ordenamentos jurídico-penais utilizaram tal teoria, mesmo esta se mostrando com muitas acepções lacunosas e imprecisas, acarretando problemas em sua aplicação, sobretudo, no que tange aos tipos penais abertos e sua incidência quanto aos aspectos socialmente adequados.

Em relação aos tipos penais abertos, os quais, diferente dos tipos fechados, não possuem a representação completa da conduta delitiva, delegando ao magistrado o encargo de preencher tal lacuna, balizando suas percepções conforme os ditames legais, Welzel entende pela pertinência da adequação social no momento da interpretação perquirida nos tipos penais abertos, visto que, por certos tipos não estarem acepilhados, estariam imbricados, de forma incompleta pelos substratos do injusto, devendo seu complemento vir de fora do tipo, mais precisamente dos substratos da antijuridicidade, corroborando para a percepção de que os tipos penais fechados seriam, em relação à ilicitude, indiciários, característica inexistente nos tipos penais abertos. Tal proposição welzeliana de tipos penais abertos neutros é rechaçada por Roxin, tendo em vista que, para este autor, os tipos penais abertos necessitam, para demonstrarem-se em consonância com o injusto, de um aspecto indiciário.

Dicotomia da Adequação Social: Local vs. Geral

Quanto à incidência em relação aos aspectos socialmente adequados, Faria, baseando nos estudos de Herbert Franzmann e Robert Scheying, traz as percepções de adequação social local e de adequação social geral, demonstrando as diversas perspectivas ético-sociais existentes. Desta forma, em relação a Franzmann, adepto de uma adequação social local, entendia esta como sendo uma conduta adequada historicamente à percepção ético-social de uma comunidade específica, e não da sociedade como um todo. Em contraponto a Franzmann, Scheying, adepto de uma adequação social geral, sugere que a valoração local não seria pertinente à adequação social, visto que este instituto deveria ter por base uma consciência jurídica geral, consistente em uma valoração comum, sendo tal perspectiva seguida por Faria.

O Papel dos Costumes e da Cultura na Adequação Social

Esta dicotomia é consequência das diversas realidades sociais advindas da globalização, visto que, pela fluidez de pensamentos na sociedade plural, determinadas situações podem ser consideradas corretas ou incorretas, a depender do ponto de vista adotado. Assim, imperiosa a análise dos limites dados aos costumes e à cultura nesta análise, para que a adequação social não se baseie em uma valoração estritamente social e prescinda a valoração jurídica. Neste panorama, o costume é considerado acessório no que tange às fontes do Direito Penal, sendo um elemento balizador, representado pela concepção de adequação social. Já a cultura, possui uma acepção abrangente, podendo ser percebida em diversos aspectos, a exemplo dos aspectos éticos, religiosos e até mesmo como nas tradições culturais, sendo possível perceber, ainda que em uma sociedade multiforme de um determinado território, uma afinidade de interesses entre os grupos pertencentes a esta sociedade. Esta dificuldade em conceituar a ideia de cultura foi enfatizada nos estudos Max Ernst Mayer, o qual, ao estruturar as normas de cultura, já identificava os entreveros para de entender o que vem a ser a cultura em si.

Sob tal perspectiva, é de se notar que a concepção do que vem a ser uma conduta criminosa não pode ser entendida como sendo algo ontológico, mas sim algo ôntico, tendo em vista sua relatividade, derivada dos diversos momentos vivenciados pela sociedade, a qual tem diversas mutações em seus referenciais ético-sociais, a exemplo das arbitrariedades sofridas pela população da Idade Média com a feitura dos autos-de-fé da Inquisição, bem como da prática da escravidão, sendo esta considerada legal e bastante corriqueira no Brasil até o século XIX. Nesta mesma perspectiva, se enquadram os bens jurídicos, tendo em vista que, com as mutações das sociedades, alguns objetos de proteção se tornam prescindíveis, sendo substituídos por outros mais relevantes.

Neste panorama, percebe-se uma certa problemática ao utilizar os costumes como um dispositivo de análise delitiva, algo que não é percebido em relação à cultura. Sob esta linha de pensamento, os costumes, dentro de uma estruturação histórica, podem alterar o âmbito jurídico, contudo, a cultura, para que tal fato posso ocorrer, necessita ser ponderada, tendo em vista ser o fundamento originário da dogmática jurídica, denotando a ideia de que a cultura seria uma estrutura dos diversos aspectos de costumes. Assim, para se ponderar o que deve ser adequado socialmente, ainda que a resposta, em um primeiro momento, pareça simples, gera deslindes complexos ao se debruçar nas sociedades plurais, visto que, por conterem diversidades de crenças, pensamentos e interesses, geram uma ampla gama de anseios dissonantes, sendo utilizada para solucionar tal problemática uma acepção decorrente do multiculturalismo: a ideia de direitos humanos básicos, a qual, mesmo decorrente de uma perspectiva cultural dominante, pode dirimir alguns conflitos relacionados ao convívio social, tendo este referencial dos direitos humanos sido defendido, sobretudo, por Jürgen Wolter.

Multiculturalismo, Direitos Humanos e Limites da Adequação Social

Ao aprofundar a temática do multiculturalismo, notam-se determinadas condutas que, mesmo sendo uma tradição de determinados entes da sociedade, demonstram uma grave violação aos direitos humanos, o que geram o clamor social para que sejam extirpadas, a exemplo do que ocorrem em determinadas populações mulçumanas, as quais, para que suas jovens mulheres não sintam prazer na relação sexual, mutilam os órgãos genitais destas. Em um primeiro momento, indaga-se se seria correto ou discriminatório o banimento de tais condutas, visto que seria uma atuação da maioria sobrepujando tradições de minorias, tendo, esta indagação, que perpassar pela compatibilização entre os direitos culturais e os direitos individuais. Neste panorama, percebe-se que os legisladores, em diversos ordenamento jurídicos, priorizam, no que tange aos confrontos normativo-culturais, uma análise em favor do réu, contudo, nos casos em que se verificam ataques claros à dignidade da pessoa humana, os legisladores tendem a um procedimento cultural em desfavor do réu, demonstrando que determinadas condutas, mesmo sendo praticadas apenas em determinadas minorias ou subgrupos, devem ser rechaçadas e proibidas.

Desta forma, a restrição dada à adequação social tem como coeficiente balizador a ideia de dignidade da pessoa humana, sob seu aspecto individual, bem como o respeito à finalidade de cada conduta típica, denotando a ideia de que, para ser adequada socialmente, uma conduta, além de ser analisada sob um prisma histórico-social, necessita não ser dissonante em relação ao propósito do legislador ao elaborar determinado dispositivo legal.

Implicações da Teoria da Adequação Social no Ordenamento Jurídico-Penal Brasileiro

Por derradeiro, insta salientar que, em relação ao ordenamento jurídico-penal brasileiro, essa teoria é considerada excludente da tipicidade material e, consequentemente, do fato típico. Ademais, ainda que seja bastante cobrada em diversos certames, na prática, por ter uma acepção muito ampla e inexata, percebe-se uma clara tendência dos julgadores pela sua não aplicação.

Por Wilson Alvares de Lima Júnior (@wilsonalj) – Advogado criminalista de sucessões, professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal, Especialista e Mestre em Direito Penal, Presidente da Comissão de Estudos de Direito Penal e de Direito Processual Penal da Abracrim/PE, autor do livro Adequação Social e Imputação Objetiva: da epistemologia do finalismo ao giro do funcionalismo.

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