Sistema penitenciário do CE: 35 mil detentos estudaram e 25 mil trabalharam nos últimos 7 anos

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Via @diariodonordeste | Daniela Del Rey é uma mulher trans, que está há dois anos e seis meses no Sistema Penitenciário cearense, sem condenação (ou seja, ainda é uma presa provisória). Já Apolinário (como preferiu ser identificado) é um preso que está há 7 anos e 7 meses no Sistema, onde cumpre uma pena de 21 anos de reclusão. Os dois internos encontraram no trabalho oferecido dentro do cárcere uma oportunidade de mudar a vida, dentro e fora do presídio.

Educação e trabalho são as “vigas mestras” do plano estadual Pena Justa, que é elaborado pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) e pela Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará (SAP), com a participação de outras instituições, segundo o supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas (GMF), do Tribunal, desembargador Henrique Jorge Holanda Silveira. 

Nos últimos 7 anos, mais de 35 mil presos realizaram atividades educacionais e mais de 25 mil detentos se qualificaram profissionalmente nos presídios cearenses, segundo a SAP. A estatística considera dados anuais (e o mesmo interno pode se repetir em mais de um ano, se tiver realizado uma nova atividade de educação ou trabalho).

Na reportagem da última segunda-feira (6), o Diário do Nordeste apresentou detalhes sobre o 'Pena Justa', programa nacional que visa melhorar as condições do Sistema Penitenciário. Na matéria de terça (7), o DN abordou os principais desafios dos presídios cearenses: a superlotação, que levou à interdição de sete unidades para receber novos presos, e as denúncias de torturas sofridas pelos presos.

Daniela trabalha com a costura de roupas íntimas femininas, na fábrica da empresa Gata Stilosa, que já funciona há 9 meses na Unidade Prisional Vasco Damasceno Weyne (UP-Itaitinga 5), em Itaitinga, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), mas foi oficialmente inaugurada na última terça-feira (29).

“Eu espero estar perto de sair. Eu quero voltar para casa, voltar para o âmbito da família, voltar para a sociedade, trabalhar e seguir uma nova trajetória.” Daniela Del Rey — Costureira, no presídio

O valor pago a Daniela, pela empresa, é dividido para a família dela e uma aplicação financeira, que depois poderá ser sacada por ela, ao sair do presídio. “Tem sido magnífico para a gente, sair da cela, passar o dia trabalhando, ter uma ocupação e, além do mais, ajudar a família lá fora, para que eles venham nos visitar”, destaca.

A interna já realizou também cursos de manicure e crochê, no presídio. Ela espera que as qualificações profissionais abram oportunidades para se reinserir no mercado de trabalho, ao deixar a prisão: “Eu espero estar perto de sair. Eu quero voltar para casa, voltar para o âmbito da família, voltar para a sociedade, trabalhar e seguir uma nova trajetória”.

Entretanto, Daniela não tem data marcada para sair do cárcere. Ela é uma dos 8.697 presos provisórios do Sistema Penitenciário cearense (37,5% do total de 23.192 detentos). Há 2 anos e meio detida, ela começou a “pagar a pena” antes mesmo de ser condenada judicialmente.

Daniela Del Rey, mulher trans, realiza trabalho de costura em fábrica instalada em presídio no Ceará/ Foto: Thiago Gadelha

Já Apolinário, que cumpre pena de 21 anos de prisão, encontrou no crochê uma forma de passar o tempo no cárcere e uma nova qualificação profissional. Ele participa do projeto Rede Artesã, no qual os detentos recebem material da família para produzir artesanatos, que são vendidos fora do presídio.

“Aqui, eu vejo como uma nova oportunidade. Para quem sai do sistema penitenciário, lá fora não é fácil. E aqui é um rumo o qual eu vejo uma saída lá fora, uma profissão. Fiz uma carteira da CeArt (Central de Artesanatos do Ceará) e, praticamente, já me tornei um artesão. Quero trabalhar com isso lá fora”, revela o detento.

Atividades realizadas na prisão

Conforme números divulgados pela Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará, 35.814 internos realizaram atividades de educação, entre os anos de 2018 e 2024. A estatística teve um crescimento contínuo até 2022, quando atingiu o auge em um ano, com 8.612 presos incluídos (com a ressalva de que o número de 2020 não foi divulgado). Esse índice caiu em 2023 e voltou a subir no ano seguinte.

Já 25.478 presos foram beneficiados com trabalho ou qualificação profissional, nos últimos 7 anos. O auge também foi no ano de 2022, com 9.035 internos trabalhando. O índice caiu nos dois anos seguintes e fechou, em 2024, com apenas 2.183 detentos em atividades laborais. O Sistema Penitenciário cearense conta com 18 empresas funcionando e oferecendo oportunidades para os presos.

Outro projeto importante para a ressocialização dos internos é o Livro Aberto, que disponibiliza livros para serem lidos no cárcere, em uma parceria com a Secretaria da Educação do Estado (Seduc). Além do conhecimento, os detentos ganham 4 dias de diminuição da pena, a cada livro lido. O Projeto já atendeu 64.742 presos, nos últimos sete anos.

O secretário da Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará, Mauro Albuquerque, afirma que as atividades de educação e trabalho nos presídios são “de fundamental importância”.

“A maioria dessas pessoas estão aqui porque isso não foi trabalhado lá na sua infância, adolescência. A maioria não justifica, eu sou contra o 'vitimismo'. Mas, dessas pessoas que vêm para cá, 70% nunca estiveram em uma sala de aula ou nunca tiveram um emprego fixo. O que nós começamos a fazer desde 2019? Capacitar maciçamente e colocar dentro de sala de aula”, completa.

A coordenadora de Inclusão Social da SAP, Cristiane Gadelha, explica que a Coordenadoria tem o objetivo de “padronizar ao máximo as ações, levando capacitação a todas as unidades prisionais, ações de incentivo à leitura. E, naquelas unidades que a gente tem espaço de trabalho, a gente consegue tanto atrair as empresas para trabalhar no interior do Sistema Penitenciário como incrementar oficinas de trabalho”.

“A gente, que acompanha o Sistema Penitenciário no interior da unidades e recebe essas pessoas que saem, para encaminhar lá fora, comprova que existe uma mudança de caminho, de história de vida. No projeto Cadeias Produtivas, menos de 2% dos egressos reincidem e retornam ao presídio”, pontua Gadelha.

Detentos realizam atividades laborais diversas, nos presídios cearenses/ Foto: Thiago Gadelha

A UP-Itaitinga 5, inaugurada em novembro de 2016, onde estão os presos Daniela e Apolinário, é uma Unidade Penitenciária voltada para o trabalho e a capacitação dos internos. Uma realidade diferente de outros presídios no Ceará, separados por facções criminosas, sem tantas oportunidades de educação e trabalho e também sem o mesmo engajamento dos detentos.

“Uma unidade prisional como essa, que hoje tem cerca de 1.500 presos, torna muito mais fácil você trabalhar na Unidade com esses internos, quando eles estão participando de algum curso de capacitação, em alguma atividade laboral ou estudando. Porque ele (preso) consegue manter, durante o dia todo, sua mente ocupada, desenvolvendo alguma atividade”, pontua o diretor da Unidade, o policial penal Kelsen de Sá.

“Para quem sai do sistema penitenciário, lá fora não é fácil. E aqui é um rumo o qual eu vejo uma saída lá fora, uma profissão. Fiz uma carteira da CeArt (Central de Artesanatos do Ceará) e, praticamente, já me tornei um artesão. Quero trabalhar com isso lá fora.” Apolinário — Artesão, no presídio

A diretora administrativa Áline Élida, da empresa Gata Stilosa, que instalou uma fábrica na UP-Itaitinga 5, explica o investimento em uma sede da empresa dentro do Sistema Penitenciário: “em meio às dificuldades que a gente encontra lá fora, em relação a costureira, mão de obra, nós tivemos essa oportunidade e decidimos conhecer”.

“Está valendo a pena. Hoje, o mercado de trabalho lá fora não entrega tanto quanto aqui dentro. Eles (presos) se cobram muito, tanto em produção quanto com a questão da qualidade da peça. Acredito que eles (presos) vão sair daqui com uma profissão”, conclui Élida.

Apesar das oportunidades de educação e trabalho que surgiram no cárcere nos últimos anos, representantes de órgãos públicos que foram convidados para colaborar com o programa Pena Justa no Ceará esperam uma expansão ainda maior de projetos nessas áreas, no Sistema Penitenciário. 

Ao fim de 2024, a população carcerária cearense era de 22.304 internos. Isso significa, conforme os dados da SAP, que 20.121 presos não passaram por qualificação profissional e 14.649 detentos não estudaram no presídio, no último ano.

Detentos produzem artes de crochê e confeccionam roupas, nos presídios cearenses/ Foto: Thiago Gadelha

Alternativas para os egressos

O desembargador Henrique Jorge Holanda Silveira, do Tribunal de Justiça do Ceará, classifica a educação e o trabalho como as prioridades do programa Pena Justa no Ceará. “Estatisticamente, muita gente sai do presídio e, pouco tempo depois, volta. Por quê? Muitos são analfabetos, não trabalham, não têm uma profissão. Então, eles vão voltar porque não tem muito o que fazer, a maioria é cooptado pelas facções, infelizmente”, afirma.

“E, se nós dermos essa oportunidade dele (preso) desenvolver um trabalho ou de estudar, eu penso que ele vai voltar menos do que hoje retorna para o presídio”, projeta o desembargador.

O Tribunal de Justiça, a partir do Núcleo de Apoio às Varas de Execução Penal (Nuavep), desenvolve o programa Um Novo Tempo, voltado para a ressocialização de egressos do Sistema Penitenciário cearense. As iniciativas contam com apoios de instituições públicas e privadas.

O Programa conta com seis projetos:

• Aprendizes da Liberdade: voltado para a alfabetização e letramento de apenados do regime semiaberto ou aberto, com atendimento psicossocial;

• Bem-Me-Quero: trabalha as potencialidades femininas com o intuito de fortalecê-las, após o período na prisão;

• Justiça de Portas Abertas: busca por vagas de emprego e realiza o acompanhamento familiar do egresso;

• Transformar: visa a reintegração sócio-familiar do egresso, através de círculos restaurativos e de construção de paz;

• Vivências Sistêmicas: atividades para o desenvolvimento integral na vida social, nas relações e na formação cidadã daqueles que estão em cumprimento de pena;

• Vozes da Liberdade: tem como foco a contribuição financeira para as mulheres e a orientação para o empreendedorismo.

Segundo o TJCE, 731 pessoas participaram dos projetos do Programa Um Novo Tempo ao todo, nos anos de 2023 e 2024. Foram 259 participantes no último ano e 472, no ano anterior.

Créditos

Messias Borges — Repórter
Thiago Gadelha — Fotógrafo
Emerson Rodrigues — Editor de Segurança
Karine Zaranza — Coordenadora de Jornalismo
Ívila Bessa — Gerente de Jornalismo
André Melo — Gerente Audiovisua

Fonte: diariodonordeste.verdesmares.com.br

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